por: Augusto Nunes
O gesto que antecipou a ditadura militar
"Sete anos depois do suicídio de Getúlio Vargas, sete meses depois da
posse, o presidente Jânio Quadros precipitou, com sete linhas
manuscritas, a sequência de crises que conduziria, sete anos mais tarde,
ao Ato Institucional n° 5 — e à instauração da ditadura sem
camuflagens. Na manhã de 25 de agosto de 1961, a democracia, ainda em
sua infância, viu-se forçada a renunciar à maturidade, que só seria
alcançada caso fossem cumpridos integralmente dois mandatos
consecutivos. O Brasil civilizado pareceu mais distante do que nunca no
dia em que o presidente sumiu.
Abrupto e inesperado, o último ato foi um fecho coerente para a
ópera do absurdo composta desde o primeiro dia de gestão. “Ele foi a UDN
de porre no governo”, resumiu Afonso Arinos de Mello Franco,
ministro das Relações Exteriores. “Faltou alguém trancá-lo no
banheiro”, lastimou.
Só se fosse para sempre, sabe-se hoje. Algumas horas de cárcere privado
só adiariam a tentativa de instituir o presidencialismo autoritário que
o deixaria livre para agir.
Na carta da renúncia, o signatário informou que deixara com o ministro
da Justiça as razões do seu gesto. O segundo texto confiado a Oscar
Pedroso Horta é um amontoado de queixas difusas, alusões a “forças
terríveis”, declarações de amor ao Brasil e juras de apreço ao Povo (com
maiúscula). Ele só contou a verdade alguns meses antes de morrer, em 16
de fevereiro de 1992, numa conversa com Jânio John Quadros Mulcahy, o
único filho homem de Tutu Quadros.
Em 25 de agosto de 1991, 30 anos depois da renúncia, o paciente
internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, foi acometido de um
surto de sinceridade provocado pela curiosidade do neto.
“O vice João Goulart era uma espécie de Lula, completamente inaceitável
para a elite”, comparou. “Eu o mandei para a China para que estivesse
longe de Brasília no dia da renúncia, sem condições de reivindicar o
cargo e fazer articulações políticas. Achei que iriam implorar-me para
que ficasse.”
O intuitivo genial só se esqueceu de combinar com os adversários, com
os militares e com o povo. “Fiquei com a faixa presidencial até o dia
26”, contou ao neto. “Deu tudo errado. E o país pagou um preço muito
alto.” Jango acabou engolido pelos quartéis, mas seria expelido três
anos mais tarde. A tentativa de implantação de uma ditadura civil
resultou no advento de uma ditadura militar ortodoxa.
Como o país, Jânio pagou caro pela renúncia ao mandato conferido por
mais de 5,6 milhões de eleitores. Transformado numa caricatura de si
próprio, tentou a ressurreição impossível antes e depois da cassação, em
1964. Fracassou em 1962 e em 1982, na tentativa de voltar ao governo
paulista, e elegeu-se prefeito da capital em 1985. Aos 75 anos, morreu
pensando na presidência. Aparentemente, a frustração pela morte política
não foi compensada pela fortuna depositada num banco suíço.
Cinquenta anos depois da renúncia, o Brasil parece bem menos primitivo,
a democracia tem solidez e Jânio figura na galeria presidencial como
outro ponto fora da curva. Mas tampouco parece suficientemente moderno
para considerar-se livre de reprises da farsa. Países exauridos pela
corrupção endêmica serão sempre vulneráveis a aventureiros que, com um
discurso sedutoramente agressivo, prometam varrer a bandalheira. "
Fonte: VEJA
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