quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Segurança Alimentar


O Conceito de Segurança Alimentar
A Segurança Alimentar e Nutricional significa garantir, a todos, condições de acesso a alimentos básicos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com base em práticas alimentares saudáveis, contribuindo, assim, para uma existência digna, em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana.

Esta é a definição mais vigente de Segurança Alimentar, no Brasil. Ela foi construída por ocasião da elaboração do documento brasileiro para a Cúpula Mundial de Alimentação, por representantes do governo e da sociedade civil.
Representa um conceito bastante abrangente, comportando as noções do alimentar e do nutricional; enfatizando os aspectos do acesso e da disponibilidade em termos de suficiência, continuidade e preços estáveis e compatíveis com o poder aquisitivo da população; ressaltando a importância de qualidade; valorizando os hábitos alimentares adequados e colocando a segurança alimentar e nutricional como uma prerrogativa básica para a condição de cidadania.
Fica faltando incluir, nesta definição, o aspecto da sustentabilidade ecológica, social e econômica do sistema alimentar, noção que foi mais incorporada ao conceito, após a Cúpula Mundial.
O que é importante saber é que esta compreensão foi o resultado de um longo debate travado no Brasil e em diversas outras partes do mundo. Um debate que, à exemplo também do conceito de sustentabilidade, reflete uma disputa árdua de posições entre interesses às vezes bastante conflitantes, em torno dos sentidos que a "Segurança Alimentar" vai adquirindo.
O termo "Segurança Alimentar" surge, pela primeira vez, logo após o fim da Iª. Guerra Mundial. Percebia-se que um país poderia dominar outro, se tivesse o controle sobre seu fornecimento de alimentos. Esta era uma arma poderosa, principalmente se aplicada por uma potência sobre um país mais fraco no plano militar e, também, incapaz de produzir suficientemente seus alimentos. Portanto, o termo "Segurança Alimentar" é, de fato, em sua origem, um termo militar. Tratava-se de uma questão de segurança nacional para todos os países. Apontava para a exigência de formação de estoques "estratégicos" de alimentos e fortalecia a visão sobre a necessidade de busca de autosuficiência por cada país.
Trazia, assim, um entendimento que vinculava a questão alimentar à capacidade de produção. Esta vinculação manteve-se até a década de setenta. Na Ia. Conferência Mundial de Segurança Alimentar, promovida pela FAO, em 1974, em um momento em que os estoques mundiais de alimentos estavam bastante escassos, com quebras de safra em importantes países produtores, a idéia de que a Segurança Alimentar estava estritamente ligada à produção agrícola era corrente. Isto veio, inclusive, fortalecer o discurso da indústria química na defesa da Revolução Verde. Afirmavam que o flagelo da fome e da desnutrição no mundo desapareceria com o aumento significativo da produção agrícola, o que estaria assegurado com o emprego maciço de insumos químicos (fertilizantes e agrotóxicos). A produção mundial, ainda na década de setenta, se recuperou - embora não da mesma forma como prometia a Revolução Verde - e nem por isto desapareceram os males da desnutrição e fome, que continuavam atingindo tão gravemente parcela importante da população mundial.
É neste contexto que se começa a perceber que, mais do que a disponibilidade de alimentos, a capacidade de acesso aos alimentos por parte dos povos em todo o mundo mostra-se como questão crucial para a Segurança Alimentar. Claro está que outros fatores podem ser causadores de agudas crises de insegurança alimentar, como as situações de guerra e desestruturação da capacidade de produção, como tem ocorrido em países da África. Ou a situação de bloqueio econômico, sofrida geralmente por países que se recusam a se submeter às políticas das grandes potências econômicas e militares. Ou em situações de catástrofes naturais, em que a agricultura dos países atingidos é, parcial ou totalmente destruída.
A FAO estima que, hoje, um total de 800 milhões de pessoas passam fome, continuamente, em todo o mundo. A maior parte dessas pessoas está localizada nas partes mais pobres do planeta, em especial na África, alguns países da Ásia e da América Latina. Mas deve também ser percebido o crescimento de bolsões de miséria, mesmo em países desenvolvidos, fruto, em grande parte, das medidas de ajuste econômico do ideário neoliberal, que vêm provocando, nestes países, o crescimento do desemprego e o abandono das políticas sociais.


Desnutrição e Fome no Brasil: sua distribuição regional e grupos de risco
O Mapa da Fome mostrou, em 1993, que o Nordeste continua apresentando índices extremamente elevados de indigência, com todas suas consequências, entre as quais a fome e a desnutrição da população atingida. Índices menos elevados, mas também presentes em outras regiões, mostram que o país conserva bolsões de miséria em todo o seu território. Nas zonas mais populosas, como as das áreas metropolitanas no Sudeste, o número de famílias em condição de pobreza extrema é significativo. Contudo, é na área rural que, proporcionalmente, a indigência mostra-se mais severa.
Os índices de mortalidade infantil e na infância e os indicadores de peso e altura de crianças até 5 anos confirmam o que foi demonstrado no Mapa da Fome, apontando o Nordeste brasileiro em uma situação inaceitável, principalmente em sua área rural.
É como existissem dois brasis. Um primeiro, o país do Norte e Nordeste, em condição comparável às nações mais pobres da África e da América Central. E, o país do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, também contendo seus bolsões de pobreza, mas alinhado ao grupo em melhores condições dos países em desenvolvimento.
Se ocorreram melhorias na situação de carência calórica e proteica, mostra-se grave a situação nutricional de parte significativa da população brasileira, em termos de deficiências de vitamina A, ferro, iodo e cálcio.
Novo e lamentável é o crescimento da obesidade entre a população adulta, em especial, a feminina. Atingindo estratos mais pobres da população, revela os efeitos generalizados de práticas inadequadas de alimentação e vida, predominantes principalmente nas grandes cidades.
Os contingentes de sem-terras ainda não assentados, pequenos produtores rurais completamente excluídos das políticas agrícolas, comunidades indígenas, população de rua na mendicância e trabalhadores com baixíssima renda ou desempregados, constituem os grupos de risco, nos campos e cidades, submetidos à fome e desnutrição.


A identificação do problema da fome e desnutrição no Brasil, que atinge parcelas expressivas da população, não é um dado novo a informar sobre a gravidade da realidade social aqui dominante. Tal problema sempre se mostrou como uma das manifestações mais visíveis do quadro de aguda desigualdade perpetrado ao longo de nossa história.
A iniquidade surgiu desde o processo de colonização e veio se retroalimentando, de forma ininterrupta, até os dias de hoje. Sobreviveu às transformações inegáveis por que passou a economia e sempre teve como uma de suas consequências mais trágicas a criação e preservação de contingentes de homens, mulheres e crianças condenados à prisão da fome e desnutrição.
Embora sendo problema secular no Brasil, a fome e a desnutrição tornaram-se mais visíveis devido à insistência de alguns brasileiros em não permitir que suas causas e efeitos ficassem escondidos. Josué de Castro e Herbert de Souza, o Betinho estão entre esses nomes mais dignos, que nunca exitaram em denunciar o problema em todos os espaços que tinham alcance, nacionais ou internacionais. Josué de Castro, para o desagrado das elites, demonstrou que a fome não é um fenômeno natural, como tantos querem fazer crer, classificando-a como o "flagelo fabricado pelos homens contra outros homens". Betinho na campanha que liderou contra a fome, sempre relacionou o direito à alimentação com a cidadania, lembrando com clarividência que "a fome não viola apenas os famintos, fazendo todos prisioneiros da miséria".
Mas, se a fome e a desnutrição estão às vistas de todos que não se negam a enxergar esta dura realidade, afinal, qual é o tamanho deste problema no Brasil? Como ele se distribui, seja regionalmente, seja pelos grupos sociais mais atingidos? Sem dúvida, para a gravidade que tal flagelo assume no país, era de se esperar que houvesse uma maior preocupação por parte de autoridades e especialistas, no sentido do permanente mapeamento de todas as faces possíveis que o problema pode assumir. Apenas recentemente iniciou-se a elaboração conjunta, por parte de representantes do governo e da sociedade civil de indicadores de Segurança Alimentar. Porém, os dados disponíveis ainda são escassos.
A seguir apresenta-se indicadores referentes à proporção da indigência no país e outros ligados à saúde e nutrição, procurando-se dentro do que se dispõe destes dados possibilitar um diagnóstico sobre a fome e desnutrição no Brasil.

Indigência, fome e desnutrição
Em 1993, quando se iniciava a movimentação em torno da Campanha da Fome, o IPEA divulgou os números da indigência no Brasil, que ficaram conhecidos como o "Mapa da Fome". Estes dados tiveram imenso impacto na revelação dos números da extrema pobreza existente no país. Somavam 32 milhões de brasileiros em condição de indigência e fome, algo superior à população total do Canadá ou da Argentina.
Considerou-se indigente a pessoa cuja renda familiar correspondesse, no máximo, ao valor da aquisição da cesta básica de alimentos que atendia aos requerimentos nutricionais recomendados pela FAO/OMS/ONU, para a família como um todo.
A Tabela 1 apresenta a proporção de indigentes em relação ao total da população, para regiões e unidades da federação, segundo a situação de domicílio (urbano e rural). Observa-se que, sem a desagregação dos resultados (para os segmentos metropolitano, urbano e rural), o Nordeste mostra o índice mais elevado, com 40% da população em estado de indigência, sendo que Piauí, Ceará, Maranhão e Paraíba colocam-se como os estados onde esta relação revela níveis de pobreza mais impressionantes. A ausência dos dados rurais, para a região Norte, certamente contribuiu para atenuar o resultado médio desta região. As demais regiões ficaram abaixo do patamar de 20%, influenciando para a média brasileira de 21%.
Entre as áreas metropolitanas consideradas, o Nordeste igualmente liderou os níveis de maior proporção de pobreza extrema, quando quase 20% de sua população metropolitana se encontrava em estado de indigência. Fortaleza, Recife e Salvador tiveram os maiores índices, não apenas do Nordeste, mas de todo o Brasil.
Nas áreas urbanas não-metropolitanas, mais uma vez os estados do Nordeste encabeçaram as maiores proporções da indigência, com liderança para os estados do Ceará, Piauí e Paraíba.
Mas, no Brasil, é significativamente maior, para a área rural, a proporção das populações abaixo da linha da pobreza. Os índices são muito altos em quase todos as unidades da federação, sendo que apenas São Paulo está em um nível abaixo de 20%. No Nordeste, os resultados são extremamente elevados. Estados como Piauí e Paraíba apresentavam mais do que 70% de sua população rural em condição de extrema pobreza. O índice médio da região mostra que mais da metade da população que vive no campo se encontra naquela condição, tendo como consequência a fome e a própria negação de sua cidadania. Mas o que causa espanto é que, fora do Nordeste, em estados considerados exemplares no nível de desenvolvimento e riqueza que alcançaram, como o Paraná, esta proporção chega a quase 40% do total da população rural. Tudo isto fortalece a convicção de que a superação da miséria e da fome, no Brasil, passa em grande medida por uma profunda transformação das relações sociais no campo.
Na totalização dos dados brutos do Mapa da Fome fica nítido o peso do setor rural no total dos 32 milhões de brasileiros em estado de indigência. Embora detendo apenas 23% da população brasileira, o campo comparece com mais de 50% da população abaixo da linha de pobreza.
Os Gráficos 1, 2, 3 e 4 indicam como se distribui a pobreza mais extrema no Brasil. No agregado urbano e rural, apresentado no Gráfico 1, o Nordeste participa com 55% do total, enquanto a região Sudeste - com população bem mais numerosa que o Nordeste - representa 25% do total. As demais regiões somam 20%. Na distribuição da população em situação de indigência das grandes metrópolis, a região Sudeste, com 55% e o Nordeste, com 34% formam a grande maioria. As regiões Sul e Norte somam apenas 11%. Recorde-se que este resultado não surpreende, quando se considera que a região Sudeste concentra a maior parte da população das grandes metrópolis. Nas cidades menores é também no Nordeste e no Sudeste que se concentra a indigência, com 76%. Já na zona rural, o Nordeste têm o maior contingente, com larga margem sobre as outras regiões, mesmo com população rural inferior ao Sudeste e ao Sul. Estes, que praticam a agricultura mais modernizada no Brasil, têm juntos 34% do total de indigentes da zona rural do país.
O Mapa da Fome sofreu alguns questionamentos na época de sua divulgação. O principal referiu-se à inadequação da cesta básica adotada, para medir o poder aquisitivo das famílias brasileiras. Outra dúvida, também suscitada, foi sobre o critério de avaliar o nível de pobreza apenas pela capacidade aquisitiva. Argumentava-se que, para o campo, era necessário considerar a chamada produção de subsistência dos pequenos produtores. Estaria, assim, havendo uma superestimação da miséria na zona rural. Diante destes argumentos foi constituído grupo de trabalho, no âmbito do governo, responsável por discutir critérios consensuais, ou próximos disto, para um novo Mapa da Fome. Embora o GT já esteja trabalhando a certo tempo, até hoje não saíram novos resultados.
Sem dúvida, outro problema é que esta estimativa da indigência no Brasil está baseada em dados que já começam a ficar superados, em especial considerando os fatos ocorridos durante a década de noventa, como o Plano Collor, o Plano Real e, mais recentemente, o crescimento do desemprego. Mas, provavelmente ela não se alterou muito no que se refere à forma como se distribuem as populações mais carentes, a níveis regionais.

Indicadores de saúde e nutrição
Indicadores de mortalidade infantil e na infância
Saúde e nutrição são duas categorias dependentes entre si. Não pode haver saúde se não houver nutrição adequada. E, mesmo que a nutrição seja adequada, o corpo humano precisa gozar de saúde para que possa aproveitá-la. Estas afirmações tornam-se ainda mais relevantes quando se trata da intrínseca relação existente entre saúde e estado de nutrição na infância. De fato, "más condições de nutrição podem ser devastadoras para a saúde da criança, comprometendo seu potencial de crescimento e desenvolvimento, minando sua capacidade de resistência às doenças e reduzindo suas próprias chances de sobrevivência" (Monteiro, 1997).
Na avaliação das condições nutricionais que prevalecem em um país, alguns dados ligados ao campo da saúde constituem informações importantes para este diagnóstico. É o caso dos indicadores de mortalidade, haja visto que algumas das causas-mortis mais freqüentes podem estar associadas a problemas de origem nutricional. Isto vale, sobretudo, para a mortalidade de crianças até 5 anos de idade.
No Brasil, dados recentes indicam progressos relevantes na redução da mortalidade infantil e na infância. A média nacional e todas as regiões apresentam queda contínua do indicador de mortalidade, como demonstram os Gráficos 5, 6 e 7.
Alguns aspectos, na observação destes dados, devem ser assinalados. Em primeiro lugar, os processos de registro de mortalidade não se dão com a mesma eficiência em todas as regiões. Assim, por exemplo, pode se considerar que a cobertura do sistema de mortalidade no Sul do país se dá em um padrão bastante eficiente. Na região Sudeste é também confiável este sistema, salvo dificuldades isoladas. Nas regiões Centro-Oeste e Nordeste alternam-se situações de eficiência e precariedade no registro. E, na região Norte, tudo leva a crer que o sistema se mantém bastante vulnerável, com elevado grau de subregistro. Desta forma, a média nacional real da mortalidade infantil e de menores de 5 anos deve se encontrar alguns pontos acima do que os dados oficiais indicam. E os índices do Nordeste e do Norte do país, que já são os mais elevados, possivelmente alcançam valores ainda mais altos. Trabalhos que levam em consideração este subregistro, estimaram para o ano de 1992, uma taxa nacional de mortalidade infantil de 57 óbitos, por mil crianças nascidas vivas.
Se os progressos na redução da mortalidade infantil são notórios, os indicadores nacional e das regiões mostram-se, mesmo assim, ainda extremamente elevados. Basta considerar que a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera como meta possível de ser alcançada - e que já é realidade em alguns dos países mais desenvolvidos - a ocorrência de 6 óbitos para mil nascidos vivos. Também é importante lembrar o exemplo de Cuba, que apesar de todas as conhecidas dificuldades provocadas pelo embargo econômico a que está submetida, apresenta um índice, para a faixa de até 1 ano de vida, de 9 óbitos para mil nascidos vivos, o que prova existir uma possibilidade real de obtenção de resultados, para os quais o Brasil ainda parece muito distante.
Observando-se a Tabela 2, verifica-se que o papel da desnutrição em relação à mortalidade infantil e de crianças menores de 5 anos não fica muito evidente, quando se analisam as principais causas de mortalidade pois, embora as doenças respiratórias e infecciosas tenham a desnutrição como causa associada, esta informação não é registrada nas estatísticas, subestimando a importância do estado nutricional no óbito infantil. Cabe ressaltar que as causas de morte devido às deficiências nutricionais, só são reconhecidas quando a desnutrição é identificada como a causa principal que determinou a ocorrência do óbito.
Indicadores nutricionais
A avaliação antropométrica (medidas de peso e altura em relação à idade) constitui-se na mais frequente forma de conferir o desenvolvimento físico na infância e seu estado nutricional.
Os indicadores derivados da avaliação antropométrica, no Brasil, sempre demonstraram existir um estado nutricional grave para uma parcela não desprezível de crianças. No entanto, nas últimas décadas, vem se presenciando avanços importantes nesses indicadores, ainda que persistam problemas diferenciados, de acordo com os diversos estratos populacionais.
A Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde (PNDS), de 1996, apresenta os resultados mais recentes de avaliação antropométrica, no Brasil. A comparação das avaliações antropométricas realizadas nos anos de 1989 e 1996 confirma o declínio já referido dos indicadores de baixo peso e estatura, para crianças menores de 5 anos. A média nacional do indicador de baixo peso reduziu-se de 7,1% para 5,7% das crianças pesquisadas, enquanto que, para o indicador de baixa estatura, caiu de 15,4% para 10,5%.
Os Gráficos 8 e 9 revelam o percentual de crianças menores de 5 anos com baixos peso e estatura, nas zonas urbana e rural no Brasil, demonstrando que a desnutrição na infância localiza-se principalmente na área rural, embora também esteja presente na área urbana. Observa-se, ainda, que tanto na avaliação antropométrica de peso/idade, quanto na de altura/idade, o decréscimo da desnutrição foi sempre maior para as crianças residentes nas áreas urbanas. Ou seja, aonde a situação era mais grave, menos se avançou.
Conforme fica demonstrado nos Gráficos 10 e 11, os mais altos índices de desnutrição estão nas regiões Norte e Nordeste, para os dois tipos de indicadores antropométricos aqui adotados. No tocante ao índice de peso/idade, para a região sul, o resultado se iguala ao padrão dos países desenvolvidos. É com base nesta desigualdade regional que Monteiro (1997) ressaltou os "contornos geográficos nítidos à imagem de dois países: o país do Norte e Nordeste alinhado a nações muito pobres da África e da América Central, e o país do Sul, Sudeste e Centro-Oeste alinhado a um reduzido e privilegiado grupo de países em desenvolvimento, caracterizado por níveis médios ou altos de riqueza e sistemas eficientes de seguridade social".
O SISVAN, órgão do Ministério da Saúde, registrou dados bem mais graves sobre a desnutrição infantil. Em pesquisa realizada em 1996, em 17 estados e 1.300 municípios, revelou haver uma média nacional de desnutrição de 41%, em crianças entre 6 e 24 meses, avaliada pelo índice de peso/idade. Este elevado índice em parte pode ser explicado pela alta afluência de crianças em situação de pobreza, que procuraram os serviços de saúde credenciados, visando serem beneficiários da distribuição de leite e óleo de soja.
Outro indicador de nutrição relevante é o peso ao nascimento. No Brasil, a incidência de baixo peso ao nascer mantém índices elevados, sobretudo nos estratos já apontados pelos indicadores antropométricos como de maior desnutrição infantil, ou seja, na área rural e nas regiões Nordeste e Norte.
É importante registrar que o indicador de baixo peso ao nascer, referente a crianças nascidas vivas com menos de 2.500 gramas, revela frequentemente situações de desnutrição materna, ao mesmo tempo que projeta dificuldades graves para a sobrevivência infantil e, quando a criança sobrevive, sobre o estado nutricional nos primeiros anos de vida. Monteiro (1997) estudando os dados primários do PNDS divulgou informações sobre este indicador que devem ser mencionadas. A incidência de recém-nascidos de baixo peso alcançaria a média nacional de 9,2%. Nas áreas urbanas são 9% das crianças nesta faixa de idade, enquanto que na área rural o índice sobe para 11%. O Nordeste encabeça a lista das regiões de maior incidência de baixo peso ao nascer, com 9,4%, seguido do Centro-Sul, com 9,1% e na região Norte, com 8,7%.
Pesquisas isoladas têm detectado outros problemas nutricionais referentes a carências específicas de micronutrientes, como o ferro, a vitamina A, o iodo e, mais recentemente, o cálcio.
A deficiência de vitamina A já é considerada problema endêmico para uma parte significativa da população das regiões Norte e Nordeste e, também, no Sudeste. Identifica-se a população infantil do Nordeste como a mais vulnerável. Ocorreu também evidências de carências de vitamina A em bolsões de pobreza de Minas Gerais e São Paulo, caracterizando situações endêmicas.
Observe-se que a hipovitaminose A é a principal causa da cegueira evitável, sendo ainda responsável por parte das mortes por diarréias em crianças.
Outra deficiência nutricional significativa na população brasileira é a do ferro. As maiores vítimas de anemia são as mulheres no período fértil e crianças menores de dois anos.
O bócio e outros distúrbios decorrentes da deficiência de iodo representam grave problema de saúde pública no país, embora pudessem ser facilmente solucionados se fosse garantida a adequada adição de iodo no sal de cozinha.
No que se refere à pesquisas sobre o estado nutricional da população adulta, o último estudo de maior abrangência foi realizado em 1989, pelo INAN/Ministério da Saúde. Tanto para o sexo masculino quanto para o feminino, as faixas etárias com maior incidência de baixo peso estavam entre os mais jovens (18 a 24 anos) e os mais velhos (65 anos e mais).
A comparação deste inquérito com o anterior, realizado em 1975, demonstra redução acentuada da prevalência de adultos com deficiência crônica de energia (baixo índice de massa corporal). No entanto, um novo dado começou a aparecer com maior intensidade, qual seja a prevalência de obesidade em graus consideráveis na população adulta, em especial na população feminina. Ficou, então, evidente o fato de que a situação nutricional da população adulta começava a assumir um perfil que, conservando níveis altos de subnutrição, passava também a se assemelhar ao observado nos países desenvolvidos, introduzindo um novo problema de segurança alimentar e nutricional no país.
Pesquisas de maior abrangência, posteriormente realizadas, vem confirmando aquilo que foi observado em 1989.

Grupos de risco
Do que foi apresentado, referente aos indicadores de indigência, de mortalidade (infantil e de crianças até 5 anos), de avaliação antropométrica, de baixo peso ao nascer e de desnutrição adulta, torna-se possível - dentro dos limites destes próprios indicadores - caracterizar quais as populações que se apresentam em situação de "insegurança alimentar e nutricional" (do ponto de vista carencial), constituindo os chamados grupos de risco.
Todos os indicadores revelaram que a desnutrição se concentra na área rural, embora também existindo na área urbana. Por outro lado, a região Nordeste e, em menor grau, a região Norte têm as maiores proporções de desnutridos em todo o país.
Provavelmente o grupo populacional que mais sofre o problema da desnutrição é o dos trabalhadores rurais sem terra. Observe-se que no Mapa da Fome foi estimado um total de 4 milhões de famílias, na área rural, em situação de indigência e fome, enquanto que estudos sobre a estrutura agrária brasileira, na mesma época, estimavam que 4,8 milhões de famílias não tinham terra para viver e trabalhar no campo brasileiro.
De qualquer forma, não deve também ser descartada a presença neste contingente de indigentes e desnutridos, dos pequenos agricultores em extrema pobreza, que mesmo possuindo terra, não dispõem das condições mínimas necessárias para produzir para o sustento de suas famílias, nem sequer obter rendimentos fora dessas propriedades. Neste caso, é mais extrema a situação dos pequenos produtores da região do semi-árido nordestino, onde freqüentes secas agravam cada vez mais o problema da fome e do desmantelamento de sua capacidade produtiva. Igual situação vivem os trabalhadores volantes na agricultura, sem quaisquer contratos de trabalho e submetidos a salários aviltantes. Igualmente frequente é o estado de desnutrição e a presença de doenças endêmicas correlatas nas comunidades indígenas.
Nas áreas urbanas, mesmo que em menor número, também persistem grupos em situação de extrema pobreza, sem renda ou com renda abaixo do mínimo necessário para se alimentarem suficientemente. Provavelmente, trata-se, em sua maioria, da população de rua das grandes cidades, em condição de completa exclusão do mercado e submetidos à situação de mendicância. E, em muitos casos, parte da população residente em favelas ou outras formas precárias de habitação, que também não conseguem dispor da renda necessária para garantir uma nutrição suficiente e adequada.


As causas da insegurança alimentar
Existe uma causa fundamental para a insegurança alimentar no Brasil: a incapacidade de acesso. Isto se dá especialmente pela falta de poder aquisitivo de uma parcela não desprezível da população para adquirir os alimentos que necessita. Mas existem outras faces deste mesmo problema. É, também, a falta de acesso aos bens de produção, na área rural, principalmente para aqueles que não tem terra. E, em uma outra dimensão, a falta de acesso aos serviços públicos (água, esgoto, educação e saúde) que têm impacto sobre a segurança alimentar e a falta de acesso à informação, instrumento básico para aqueles mais vulneráveis à fome e desnutrição. Outros problemas também ameaçam a segurança alimentar e nutricional no Brasil. De um lado, o crescimento das importações de alimentos, deixando a soberania alimentar do país ameaçada. De outro, a falta de sustentabilidade do sistema alimentar. Por último, a imposição de um padrão alimentar inadequado e que ameaça valores culturais de grande riqueza da nossa alimentação.

Incapacidade de Acesso
Existe uma razão maior e mais grave para a insegurança alimentar, entre as tantas causas que se manifestam no país: a incapacidade de acesso aos alimentos, no nível nutricional minimamente necessário, pelas camadas mais pobres da população.
As populações em situação de vulnerabilidade nutricional, via de regra, não tem acesso aos alimentos, por não disporem de poder aquisitivo suficiente para comprá-los. Mas que renda precisa dispor uma família, para que possa garantir sua segurança alimentar?
Para que esta renda possa ser calculada é preciso, em primeiro lugar, que se estipule o número de membros desta família. No caso brasileiro, está estabelecido um número médio de 4 pessoas, por família. Em segundo lugar, torna-se necessário definir a composição da cesta de alimentos a ser consumida. É assim que surge a noção de cesta básica, ou seja, o conjunto de alimentos que devem estar disponíveis para a alimentação de uma família, em um mês. No Brasil, embora existam várias propostas de composição para diferentes cestas básicas, ainda não se conseguiu obter a aceitação de uma determinada cesta, assumida como referência por todos (governo e sociedade). As divergências estão polarizadas, principalmente, entre a preferência por uma cesta que seja composta pelos alimentos que a população mais consome (independente de sua composição nutricional), ou por alimentos que assegurem a plena satisfação das necessidades nutricionais. No Brasil destacam-se três propostas de cestas básicas: a do Decreto 138/38, a do PROCON/DIEESE e a do Estudo Multicêntrico (Ministério da Saúde).
A Cesta Básica do Decreto 138/38 continua sendo a mais frequentemente adotada como referência do poder aquisitivo dos assalariados. Porém, está bastante ultrapassada, visto que foi estabelecida pela lei que criou o salário mínimo, em 1938. Ainda que tenha sido atualizada em alguns itens (por exemplo, a banha foi substituída pelo óleo), tem uma composição insuficiente, não dispondo de uma série de produtos atualmente consumidos. É a única cesta cuja composição e quantidade dos produtos está referenciada no consumo de uma só pessoa.

A Cesta Básica PROCON/DIEESE assumiu importância já há alguns anos, pela divulgação mensal da relação de seu custo, comparado com o salário mínimo, para quase todas as capitais dos estados brasileiros. Além dos produtos alimentícios, é também formada por produtos de higiene e limpeza.
Por fim, a cesta proposta pelo Estudo Multicêntrico, cuja composição procura definir os alimentos mais consumidos pela população e, também, assegurar uma satisfação nutricional adequada. De divulgação muito recente, encontra ainda dificuldades, de desconhecimento e reconhecimento nos âmbitos do governo e de representantes da sociedade, além do fato de que reflete apenas a realidade do padrão alimentar urbano do Centro-Sul, exigindo que seja adaptada futuramente para a área rural, refletindo uma realidade nacional.
O poder de compra de uma cesta básica, observado ao longo de um período determinado, é um importante indicador da capacidade das famílias em adquirirem alimentos, principalmente daquelas cujas rendas alcançam valores próximos ao do salário mínimo. No entanto, como já foi comentado, construir este indicador tem esbarrado na difícil decisão de qual cesta básica deve ser adotada.
O Gráfico 12 demonstra o poder de compra do salário mínimo, tendo como referência as cestas básicas do Decreto 398/38 e do PROCON/DIEESE, para a cidade de São Paulo, entre 1990 e 1997.
É clara a constatação de que, com exceção do ano de 1994, ocorre um movimento decrescente do poder aquisitivo do salário mínimo, em relação às duas cestas básicas analisadas.
A variação do poder aquisitivo do salário mínimo, na cidade de São Paulo, distinguida entre as duas cestas básicas, deve ser atribuído a suas diferentes composições, fazendo supor que a inclusão de produtos de higiene e limpeza, na cesta do PROCON/DIEESE favorece a redução de seu custo médio. Observe-se que, em 1994, com um salário mínimo era possível adquirir 1,27 cestas básicas do Decreto 398/38 e 1,48 cestas do PROCON/DIEESE, na cidade de São Paulo. Em 1997, o mesmo salário mínimo correspondia apenas a 0,88 cestas do Decreto 398/38 e 0,93 do PROCON/DIEESE.
Estudo do IPEA/DIPES converteu os produtos que compõem a Cesta Básica do Decreto 398/38, para seus equivalentes em quilo/calorias (kcal). Com isto, como aparece no Gráfico 13, pode-se dispor da informação sobre a capacidade do salário mínimo, desde o início da década de 90, de garantir, integral ou parcialmente, as necessidades do consumo de calorias, por aqueles cuja renda familiar está neste patamar. Constata-se, ainda, a distância do salário mínimo, em kcal/dia, em relação à quantidade recomendada internacionalmente para o consumo diário de calorias (2.520 kcal.) em países em desenvolvimento. Fica claro, assim, que o salário mínimo vem perdendo seu poder aquisitivo, mantendo-se distante de seu propósito original, que era de assegurar a manutenção de condições mínimas de sobrevivência, para o trabalhador e sua família.
A POF-IBGE (Pesquisa de Orçamento Familiar), de 1995-96, concluiu que os brasileiros que vivem nas áreas metropolitanas e que tinham renda mensal até dois salários mínimos, destinavam apenas 33,51%, do total de seus gastos, em alimentos, já que se viam obrigados a dirigir o restante para gastos com habitação (25%), transporte (9,7%), saúde (9,3%) e outras despesas diversas (Gráfico 14). Portanto, o acesso dessas famílias à chamada "ração essencial mínima" é muito insuficiente. No Brasil são 13,2 milhões de assalariados do setor formal da economia que recebem até 1 salário mínimo, ou 19,4% da população economicamente ativa.
Mas, se a baixa renda familiar é a causa principal da insegurança alimentar no Brasil, é preciso que também se considere a realidade específica vivida pelo população que localiza-se no meio rural. Vale retomar o estudo do "Mapa da Fome" que, dos 32 milhões de brasileiros em situação de indigência, estimou que a metade deles pertencia à área rural. Assim, não deve passar desapercebido que, embora apresentando uma população bastante inferior à área urbana, no Brasil rural praticamente a metade de sua população vive em condição de miséria.
E, neste caso, mais do que a impossibilidade de adquirir no mercado os alimentos necessários à sobrevivência, existe a impossibilidade de acesso aos bens de produção, em especial a terra. Sem a qual não pode produzir nem para a subsistência, nem para comercializar sua produção excedente, capaz de lhe garantir alguma renda.
É neste aspecto, que a reforma agrária pode ser entendida como uma das mais efetivas medidas em favor da Segurança Alimentar, rompendo com a marginalização de milhões de brasileiros impedidos de cultivar a terra, que passam a ter a oportunidade de produzir alimentos para a própria subsistência ou para o mercado.
A reforma agrária no Brasil, até hoje, não foi tratada como uma prioridade. Mesmo no governo atual, que não deixa de se autoproclamar, em todos os momentos, como tendo sido aquele que realizou o maior número de assentamentos, as iniciativas ainda são muito tímidas e, somente realizadas em função da pressão exercida pelos movimentos sociais, em especial o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. E, não deve ser omitido o fato de que, segundo os dados da própria PNAD, entre os anos de 1992 e 1995, saíram do campo, em média, 300 mil pessoas, refletindo a continuidade do processo de expulsão que vem se alongando a décadas.
Como fator positivo no campo brasileiro, expresso nos últimos anos, está o estabelecimento da aposentadoria rural. Isto está significando, para um grande número de famílias de pequenos produtores rurais, a garantia de renda de um salário mínimo, o que representa inegável reforço na luta pela sobrevivência dessas famílias. Este fato, sem dúvida, é um dos principais motivos das melhorias constatadas nos municípios mais pobres da federação, quase todos predominantemente de base rural. Porém, este benefício não se estende ao contingente de trabalhadores rurais "bóias-frias" que, por não disporem de direitos trabalhistas reconhecidos, são mantidos alijados da assistência previdenciária, que deveria lhes ser conferida.
Se o problema da incapacidade de acesso aos alimentos é o principal causador da desnutrição no país, seja diretamente através da falta de poder aquisitivo para comprá-los, seja por não dispor dos bens necessários para produzi-los, ainda outras situações de negação de acesso às mesmas populações mais pobres sobressaem-se como também geradoras da miséria e desnutrição. Trata-se do acesso aos serviços públicos essenciais e do acesso à informação. Os dados disponíveis demonstram que os avanços que estão ocorrendo recentemente no quadro nutricional do país estão associados não apenas a melhoras na renda, como à evolução favorável dos serviços públicos essenciais (saneamento, educação e saúde), constituindo-se na explicação mais consistente para o declínio de alguns dos indicadores de desnutrição.
Da mesma forma, o acesso à informação mostra-se como um elemento chave para fazer frente aos problemas da desnutrição. Exemplos também recentes, de campanhas veiculadas pelo rádio e televisão sobre amamentação e combate à diarréia levaram a resultados auspiciosos junto aos grupos vulneráveis, quando estes dispunham das condições mínimas de acesso a estes meios de comunicação.
Nos créditos aos fatores que vêm contribuindo para os avanços no campo alimentar e nutricional no Brasil, muitas vezes se omite o papel da sociedade civil, no quanto que ela contribui para estes avanços. A participação e pressão da sociedade sobre os poderes públicos tem sido decisiva, principalmente, para a democratização das instâncias de elaboração e execução dessas políticas. Mesmo ainda dando os primeiros passos na sua implantação, as comissões e conselhos, com todos os percalços com que ainda se defrontam, significam formas avançadas desta participação. 

Efeitos da estabilização monetária
Desde julho de 1994 o Brasil vive uma situação de estabilidade monetária, após muitas décadas de inflação.
O Plano Real, implementado na metade do ano de 1994, e as medidas econômicas que se seguiram, conseguiram alcançar a estabilização monetária, conservando até os dias de hoje o controle sobre os preços. Logo nos primeiros meses do Plano, as vendas de alimentos cresceram sensivelmente, tanto em relação a produtos básicos, como também com os alimentos considerados supérfluos. Este fato é fácil de compreender, pois com a queda da inflação, os salários pararam de ser corroídos ao longo de cada mês, como antes ocorria. Com a manutenção do valor dos salários durante o mês, as camadas da população de baixa renda aumentaram sua capacidade de acesso aos alimentos. Registrou-se, também, um discreto deslocamento do consumo de alguns produtos básicos tradicionais, como o arroz e o feijão, para outras fontes de energia e proteínas, como o macarrão e o frango, ou ainda para produtos que até então não constavam da dieta das pessoas de menor poder aquisitivo, como iogurtes, carnes congeladas e certos tipos de leite. Também cresceu o consumo de frutas, e hortaliças.

Se, com o fim da inflação, ocorreu uma recuperação do poder aquisitivo dos assalariados, esta recuperação se deu uma única vez e, por certo, foi incapaz de alterar profundamente o quadro de grande concentração da renda no país. Decorridos quase quatro anos do Plano, começam a se agravar alguns problemas que incidem sobre a renda dos mais pobres, como o crescimento do desemprego, os efeitos das altas taxas de juros, etc, ainda que seja prematura a avaliação das consequências dessas dificuldades.
Na avaliação do impacto do Plano Real sobre a segurança alimentar deve ainda ser considerado que para aqueles que não dispõem de renda, a estabilização monetária nada significou. Ou até significou uma maior dificuldade no acesso aos benefícios dos programas sociais, pelas restrições impostas aos gastos públicos, sob a alegação da necessidade de defesa da estabilidade da moeda.
Além disso, a contenção dos preços e, em especial, dos preços dos alimentos teve como uma das políticas básicas a irrestrita abertura do mercado brasileiro para as importações, com efeitos ruinosos para a autosuficiência alimentar do país. 

A disponibilidade interna de alimentos
A disponibilidade ou oferta interna de alimentos é satisfatória, do ponto de vista da Segurança Alimentar, quando os alimentos ofertados são suficientes para atender o consumo interno socialmente desejável. Ao lado deste atributo de suficiência aparecem ainda outros atributos de importância equivalente. São eles a estabilidade da oferta ao longo do tempo; o grau de autonomia ou autosuficiência, garantido pela capacidade de produção de alimentos do país e a sustentabilidade, econômica e ecológica, desta produção.
Para que possa ser discutida a situação de alguns destes atributos no Brasil, são apresentados os quadros de suprimento dos principais produtos da cesta alimentar do brasileiro, na década atual (Tabelas 3 a 11). Observe-se que, na ausência de um acompanhamento sistemático do consumo, calcula-se a partir da oferta o consumo correspondente, também chamado de "consumo aparente".

Nas tabelas apresentadas ficam demarcadas três tendências principais. A primeira delas é o crescimento da produção e consumo de produtos de origem animal, ao mesmo tempo que produtos alimentares tradicionais na cesta de consumo do brasileiro, como o arroz e o feijão, ou tiveram sua produção e consumo reduzida (redução do consumo per-capita de arroz), ou apresentaram um menor crescimento na primeira metade da década de noventa (pequena elevação do consumo per capita de feijão). Isto confirma o processo de substituição na ingesta de calorias e proteínas vegetais, pelas animais.
A segunda refere-se à tendência de crescimento do consumo per-capita, em relação a todos os produtos examinados, com a exceção do arroz, que se mostra decrescente e do feijão e trigo que crescem até o ano de 1993 e depois se estabilizam. De qualquer forma, a tendência de crescimento do consumo per-capita, embora positivo, se mostra incapaz de reverter um quadro de consumo alimentar ainda muito baixo, diante das necessidades nutricionais da população brasileira e quando comparado aos níveis de consumo de outros países. No caso do leite, por exemplo, o consumo per-capita em 1995, estimado em 134 litros, cresceu pouco em relação ao que representava no início da década de oitenta, algo equivalente a 100 litros por ano.
A outra tendência a ser examinada é o incremento das importações de produtos agroalimentares, como arroz, feijão, trigo e leite, todos eles tendo importante peso na cesta básica de alimentos do brasileiro.

Soberania alimentar ameaçada?
A transformação do Brasil, de grande exportador para importador de alimentos e de outros produtos agrícolas e agroindustriais tem sido defendida, com base em duas justificativas. A primeira delas evoca o atual contexto da globalização, afirmando que para o país poder participar do comércio internacional, precisa comparecer não apenas como exportador, mas também como importador. A segunda justificativa está ancorada no princípio das vantagens comparativas, ou seja, importar sempre que os custos domésticos são superiores aos preços das commodities internacionais. Os apologistas desta política procuram reforçar seus argumentos afirmando que, através desta via, estarão diminuindo a pressão inflacionária exercida pelos preços dos produtos nacionais e, também, fomentando a competitividade nos setores que não conseguem concorrer com os produtos estrangeiros.
A Tabela 12 mostra a crescente participação brasileira nas importações agrícolas mundiais, na década atual. Isto se dá pelo fato de que o crescimento das importações brasileiras tem ocorrido a uma taxa sempre superior à taxa mundial. Um argumento geralmente utilizado é o de não existir problema, se estas importações crescem a taxas iguais ou inferiores à das exportações. A Tabela 13 mostra que isto não aconteceu, registrando-se, nos sete anos observados, uma taxa média anual de crescimento do valor das importações sempre superior ao das exportações, com exceção do período 1991/92. É verdade, que o valor total exportado dos produtos agrícolas supera o valor das importações desses produtos, com certa folga, mas mostra-se preocupante a velocidade com que vem se reduzindo esta vantagem. Em 1990, o valor destas exportações foi 3,5 vezes superior ao das importações, enquanto que em 1997, este índice já havia caído para 2,25 vezes.

Entre os produtos agroalimentares, o trigo é o que provoca maior dispêndio de divisas. Em 1996, as importações do grão e de farinha de trigo significaram um gasto de US $ 934 milhões. Não custa lembrar que o Brasil, na safra 1987/88, chegou a produzir 83% das 7,4 milhões de toneladas que consumiu. Com o fim do subsídio à produção interna, esta reduziu-se drasticamente, a ponto de, na safra 1995/96, limitar-se a 19% do consumo. Os estoques mundiais vêm caindo a níveis bastante baixos, o que faz com que os preços se elevem, permitindo prever que o país gastará ainda mais com as importações do produto.
O leite e derivados é o segundo produto alimentar com maiores gastos nas importações, que começaram a subir mais acentuadamente a partir de 1993. Assinale-se que a maior parte das importações não vêm dos países do Mercosul, como seria de se esperar. As importações da União Européia e, em menor volume dos Estados Unidos, chegam ao Brasil com preços inferiores aos ofertados pelos produtores nacionais, beneficiando-se das políticas de subsídios e de dumping lá praticadas. As importações brasileiras obedecem às estratégias das grandes empresas processadoras de leite no país. O governo, por sua vez, com a política que vem praticando, de redução das tarifas de importações, penaliza duramente os produtores nacionais. A maior parte destes procura não desmobilizar seus investimentos, aceitando preços que mal cobrem os custos e que não possibilitam sua modernização, mantendo-se na atividade com baixíssima produtividade. A tendência altista dos preços internacionais, que começa a se manifestar, poderá tornar, em breve, as importações proibitivas, com repercussões bastante negativas no Brasil, pela falta de apoio dispensado aos produtores nacionais. Isto agravará o problema do consumo per-capita de leite, que ainda é muito baixo.
Deve ainda ser observado o caso das importações de arroz, produto fundamental na dieta do brasileiro e que vem adquirindo um peso crescente nas importações do país. Foi no início da década de noventa que as importações de arroz começaram a crescer, consolidando uma situação de dependência externa, apesar do país ser o maior produtor mundial, depois da Ásia. O maior risco das importações, para o Brasil, está no fato de que os preços domésticos são cada vez mais influenciados pelo mercado internacional. Diante de uma elevação dos preços internacionais do arroz, restará subsidiar o consumo interno, ou deixar a população de mais baixa renda se privar de um alimento básico na sua dieta.
Ao se analisar a atual política de importações agrícolas efetuada pelo Brasil, é preciso que ela seja observada a partir de um contexto mais amplo, estando diretamente vinculada ao objetivo de preservação da estabilidade da moeda, obtida através do Plano Real. Valendo-se de uma moeda claramente sobrevalorizada, o Brasil conseguiu manter sua cesta básica de alimentos livre de pressões altistas dos preços, recorrendo às importações. Ou seja, os produtos agroalimentares importados têm seus preços convertidos em reais a níveis artificialmente mais baixos e por meio de uma competição em condições privilegiadas contra os produtos nacionais, obrigam que estes também sejam vendidos internamente a preços igualmente baixos. Até aqui, assim se estabeleceu o processo que ficou conhecido como "âncora verde" do Plano Real, neutralizando a pressão que seria exercida pela cesta básica de alimentos sobre a inflação.
O problema pode se complicar de duas formas: por um movimento altista dos preços das commodities que o país importa, no mercado internacional, variável sobre a qual o governo brasileiro não tem como intervir e que, em algum momento, deverá acontecer, dada a volatilidade dos mercados internacionais. Ou pela necessidade do Brasil fazer um ajuste cambial, trazendo sua moeda para um patamar mais realista. A atual crise econômica, marcada pela dependência do modelo brasileiro para com o capital especulativo internacional e o crescimento da dívida pública - em parte provocada pelos seguidos déficits na balança comercial brasileira - deixa viva a ameaça de que esta segunda hipótese pode estar perto de se confirmar. Mais grave ainda será se o Brasil enfrentar uma situação simultânea de elevação dos preços internacionais dos produtos que importa e for obrigado a realizar a desvalorização de sua moeda. 
O preço mais alto que o Brasil paga, ao aplicar na agricultura a política de "abertura" de sua economia, substituindo a produção interna pelas importações, está na desestruturação da sua capacidade de produção agrícola voltada para o atendimento do mercado interno. Isto vem ocorrendo porque, ao invés de buscar fortalecer o setor produtor de alimentos mais tradicionais, baseado na agricultura familiar, a política dominante tem sido de buscar o caminho imediatista de importações de alimentos básicos, destruindo sua capacidade de produção e autosuficiência.
Somente uma profunda revisão das políticas agrícolas poderá alterar o atual quadro, que tem como uma de suas principais consequências a exclusão dos pequenos agricultores familiares. Esta revisão deve se basear na premissa de voltar a ser colocada como prioridade a agricultura local de base familiar, capaz de produzir a baixos custos e assegurar de forma estável a soberania alimentar do país. Por outro lado, esta soberania também se assegura através do fortalecimento de um padrão alimentar genuinamente brasileiro, com o respeito à cultura alimentar de nosso povo. A luta em torno desta perspectiva, portanto, não pode ficar restrita aos pequenos agricultores familiares. É neste sentido que qualquer possibilidade de transformação de prioridades passa pelo encontro de interesses entre pequenos produtores e consumidores. Vale reproduzir a preocupação de Harriet Friedmann (1995), militante canadense da causa da segurança alimentar, que sintetiza com grande clareza a dimensão desta questão: "Com a perda do poder econômico para as corporações e a perda do poder demográfico para os consumidores, os agricultores devem encontrar novos aliados, tanto para vincular a agricultura aos problemas da Segurança Alimentar, saúde e sustentabilidade ambiental, como para ajustar-se ao poder das corporações, cada vez menos regulado, no interior de um setor agroalimentar crescentemente transnacional". 


Sustentabilidade e Segurança Alimentar: progressos e novas ameaças

Tomando a definição da FAO de sustentabilidade, como o que "consiste na ordenação e conservação da base de recursos naturais e na orientação da mudança tecnológica e institucional, de tal maneira que se assegure a contínua satisfação das necessidades humanas para as gerações presentes e futuras", percebe-se que o Brasil não vem praticando um desenvolvimento sustentável, na medida que não garante nem no presente, nem para o futuro, a satisfação das necessidades humanas e sequer preserva os recursos naturais, a partir das práticas de exploração desses recursos.
Neste sentido, a discussão da falta de sustentabilidade, proporcionada pelo modelo de desenvolvimento aqui aplicado e, em especial, pelo modelo agrícola, ganha relevância quando examinado à luz do problema da Segurança Alimentar.
Não cabe estender a discussão sobre o modelo inspirado na Revolução Verde, já fartamente analisado em uma longa série de importantes estudos. Vale, somente, resgatar suas principais características, enquanto modelo que, nos últimos trinta anos, favoreceu as culturas de exportação ou associadas às grandes agroindústrias, em detrimento da pequena produção. Como efeitos e causas simultâneos deste modelo impôs-se o predomínio da monocultura e da utilização intensiva de insumos químicos (fertilizantes e pesticidas) sobre as culturas agrícolas voltadas para os mercados externo e interno.
Os nefastos efeitos sobre o meio ambiente e a saúde são hoje amplamente conhecidos: a erosão dos solos; a exigência crescente de fertilizantes químicos para compensar a redução dos recursos naturais e a manutenção dos níveis de produtividade; o envenenamento de solos, rios e lagos e dos alimentos consumidos pela população e a resistência adquirida pelas pragas. A Segurança Alimentar ficou, assim, seriamente prejudicada em diversos de seus elementos formadores, como a própria capacidade de produção e a contaminação das águas e dos alimentos.
No entanto, vem-se constatando a progressiva mudança de postura de uma parcela dos consumidores e de produtores, quanto à aceitação deste modelo predador do meio ambiente, mesmo sendo esta nova postura ainda insuficiente para exigir uma transformação mais radical do mesmo modelo.
Foi em face deste avanço que se logrou obter, por exemplo, ainda na década de oitenta, uma legislação severa sobre os agrotóxicos, embora quase nunca garantida por adequada fiscalização. Da mesma forma, observou-se também que não ocorreu uma retomada do consumo de fertilizantes e pesticidas, nas bases que acontecia na primeira metade da década de oitenta, mesmo considerando-se que os preços desses produtos vem apresentando uma tendência de queda, fruto de igual tendência verificada para os preços do petróleo.
Cresceu, também, a adoção de modelos tecnológicos alternativos e adequados à agricultura familiar, que demonstraram resultados encorajadores na maior parte dos estabelecimentos aonde foram empregados.
Mas apesar dos progressos aqui mencionados, surgiram nos últimos anos outras questões que ameaçam a construção de um sistema alimentar mais sustentável. Como pano de fundo está a constituição de uma nova ordem internacional, na qual os interesses do mercado se impõem sobre todos os demais, inclusive sobre aqueles que convergem para uma maior sustentabilidade. Isto se traduz, para todos os países, na seguinte diretriz: tornar compatíveis ou "harmonizar" as legislações nacionais ou "enquadrar" as definições de outras convenções internacionais, como é o caso da Convenção da Biodiversidade com as normas da Organização Mundial do Comércio. Ou, em outras palavras, subordinar estas legislações ou demais convenções aos ditames da OMC.
No centro desta disputa coloca-se a questão da propriedade intelectual sobre seres vivos animais ou vegetais. O Acordo Trips, oriundo da Rodada Uruguai do GATT, estabeleceu novas regras multilaterais, baseadas em standards uniformes mínimos para as legislações de propriedade intelectual dos países membros. E é com base neste acordo que vem sendo produzidas pressões de todas as ordens, por parte dos Estados Unidos e das principais agências multilaterais, sobre os países em desenvolvimento, para que reconheçam uma ordenação jurídica no âmbito da propriedade intelectual claramente lesiva a seus interesses.
No Brasil, entre os anos de 1996 e 1997, foram regulamentadas as novas legislações de Patentes e de Cultivares, que alteraram profundamente a legislação a respeito do direito de propriedade sobre seres vivos, animais e vegetais, modificados geneticamente.
Esta nova legislação, embora atenuada em comparação à forma como inicialmente se apresentou, deixou bastante suscetível o patrimônio genético nacional. Os defensores do reconhecimento da propriedade intelectual argumentaram, na ocasião, sobre o salto tecnológico que será dado, com aumento inusitado da produção agroalimentar, reproduzindo a velha promessa da Revolução Verde. Mas todos os indícios são de que os únicos beneficiados serão os grandes grupos transnacionais que buscam o total controle sobre os insumos agrícolas. Sem dúvida, os efeitos desta nova regulamentação serão sentidos em um prazo mais longo. O primeiro deles poderá ser a redução, de maneira alarmante, da diversidade genética. De fato, o atual modelo de desenvolvimento agrícola tem como uma de suas características a demanda por uma uniformidade de culturas, visando obter economias de escala e atender a produção e colheita mecanizada. Mas, paradoxalmente, ao mesmo tempo que estes sistemas destroem a diversidade, dependem dela para dar seguimento aos seus processos de inovação.
Além disso, o patenteamento de espécies vegetais traz fortes impactos sobre o agricultor, na medida que é cerceado seu direito de reprodução de sementes, prática esta que aliás sempre foi exercida. O segmento de sementes passa a ser controlado por um grupo reduzido de empresas transnacionais, em sua maioria da química fina, o que permite um domínio mais amplo sobre toda a chamada agroindústria à montante e jusante, na medida que as sementes poderão funcionar como veículo definidor de todo um pacote tecnológico.
A ameaça à sustentabilidade e à segurança alimentar pelo monopólio do segmento de sementes, concentrado nas mãos de algumas transnacionais, ocorre porque estas passam a ter a prerrogativa de definir o quê, como, quando e quanto produzir e a quem distribuir esta produção. O aumento dos custos de produção para os agricultores, determinado pelo fato de que estes terão que adquirir sementes ao invés de produzi-las e trocá-las, fará com que estes custos sejam repassados, inevitavelmente, para os alimentos, reduzindo ainda mais o acesso dos consumidores aos mesmos.
A aprovação da legislação de patentes produziu uma perplexidade nos movimentos sociais que estiveram mais diretamente envolvidos na luta contra sua aprovação. A primeira iniciativa mais significativa de resistência a esta nova situação está em curso, no Congresso Nacional. Materializou-se, inicialmente, com o Projeto-de-lei da senadora Marina da Silva, acerca do Acesso aos Recursos Genéticos. Este projeto de lei propôs a regulamentação do direito de acesso aos recursos genéticos ou produtos derivados e a cultivos agrícolas domesticados ou semi-domesticados. Inspirado nas resoluções da Convenção da Biodiversidade, da qual o Brasil é um dos signatários, tal projeto teve como sucedâneo o Projeto de Lei apresentado pelo Deputado Jacques Wagner (PT-BA), que não possui diferenças fundamentais com o projeto da Senadora Marina. O governo federal, surpreendido inicialmente com tais iniciativa, procura retomar o controle total sobre esta matéria, sabedor da pressão internacional que ocorrerá, caso a iniciativa da oposição ganhe maiores adesões e possa se tornar uma barreira para as pretensões das transnacionais. Por isto, já apresentou um substitutivo. A expectativa é de que no ano de 1999 ocorra uma definição nesta disputa. Os parlamentares que apoiam o projeto da oposição vêm buscando alternativas para o encaminhamento da proposta, ao mesmo tempo que os movimentos sociais começam a tomar conhecimento do assunto e organiza-se uma estratégia para esta luta.


A política governamental na área de segurança alimentar
As políticas do Governo Fernando Henrique Cardoso na área da segurança alimentar significaram o abandono desta questão como uma prioridade estratégica, status que fora conquistado no governo anterior. Entretanto, em grande parte premido pelas pressões que a mobilização social produz, tem sido conquistados alguns avanços, não só nos resultados – como a redução da desnutrição, constatada pelos indicadores antropométricos – como também nas formas de gestão e controle, com a criação de instâncias que garantem uma maior participação social.
De mais lastimável foi a extinção do INAN, deixando por um longo período a área de saúde e nutrição, aonde se concentravam os programas de maior importância, à espera de uma reorganização que, só um ano e meio depois, começa a se esboçar.
O início dos anos noventa é marcado por um dos períodos mais lamentáveis da política governamental na área da Segurança Alimentar. Assistiu-se, desde os primeiros dias do governo Collor, à descontinuação generalizada dos já precários programas de alimentação, então existentes. As repercussões desta política irresponsável se fizeram sentir mesmo após o impeachment de Collor, pela desestruturação que resultou para a máquina governamental.
Já no discurso de posse, Itamar Franco declarou a intenção de assumir como uma prioridade estratégica a questão da Segurança Alimentar. Sucederam-se nos seus primeiros meses de governo alguns fatos que vieram a fortalecer esta perspectiva. Foi apresentada ao presidente a proposta do governo paralelo, de uma Política Nacional de Segurança Alimentar, que tinha como uma das idéias centrais a formação de um Conselho de Segurança Alimentar, diretamente ligado à Presidência da República e que deveria nuclear as políticas de produção agroalimentar (agrária, agrícola e agroindustrial), de comercialização, distribuição e consumo de alimentos e, em paralelo, implementar ações emergenciais contra a fome. O presidente Itamar assumiu esta proposta, criando o CONSEA (Conselho Nacional de Segurança Alimentar). Este Conselho constituiu, pela primeira vez, uma parceria de ministros e personalidades de destaque da sociedade civil, em sua maior parte ligados ao Movimento pela Ética na Política.
Um instrumento fundamental para a mobilização de governo e sociedade no combate à fome foi o lançamento do Mapa da Fome, já referido neste texto. Ao lado disto, o governo Itamar procurou retomar os programas antes existentes, a partir do CONSEA. Foi assim que procurou corrigir o desvio de direção dos programas para o público alvo; a irregularidade na provisão dos alimentos (merenda escolar, cesta básica, etc.) e a pouca associação destes programas com a prestação de cuidados básicos de saúde, entre outros.
O CONSEA durou os dois anos do governo de Itamar Franco (1993 e 1994) e sob sua égide obteve-se avanços não desprezíveis na política de Segurança Alimentar, como a descentralização da merenda escolar, a ampliação e divulgação do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), a implementação do Programa de Combate à Desnutrição Infantil e a distribuição de estoques públicos de alimentos à populações carentes e/ou vítimas da seca.
Ressalte-se, ainda, a realização da Ia. Conferência Nacional de Segurança Alimentar, em julho de 1994, organizada conjuntamente pelo CONSEA e pela Ação da Cidadania. Reunindo quase 2.000 delegados, esta Conferência foi um marco histórico na luta pela Segurança Alimentar no Brasil, não apenas pela sua representatividade junto à sociedade, como também pelo que nela foi produzido, consubstanciado nas diretrizes e declaração do encontro.
Apesar do avanço que significou a criação do CONSEA e as políticas que se tentou implementar, foram muitas as limitações que se interpuseram a partir do próprio governo, na medida que as prioridades de fato foram dadas às medidas de ajuste econômico.
O governo Fernando Henrique Cardoso extinguiu o CONSEA, criando em seu lugar o Programa da Comunidade Solidária. Isto significou, de saída, a perda da prioridade estratégica conferida à Segurança Alimentar, pelo menos assim declarada, pelo antigo governo Itamar Franco.
Comunidade Solidária
Em que pese a Comunidade Solidária não ter como único alvo a questão da Segurança Alimentar, foi em sua órbita que os diferentes programas relacionados com esta matéria passavam a ser tratados.
O Programa se autodefine como tendo uma proposta estratégica de combate à pobreza e erradicação da miséria, pautada sobre intervenções de curto prazo. Também declara a intenção de conduzir a Política Social do Governo através de um processo de descentralização e da alocação de recursos com base em critérios transparentes. Seu objetivo central é gerenciar de forma eficiente e eficaz as ações e programas sociais que tragam melhorias aos segmentos mais pobres da população.
Propondo-se a trabalhar prioritariamente nos municípios brasileiros aonde é mais aguda a pobreza, baseou-se nos dados do Mapa da Fome, delimitando como grupo alvo os 10% mais pobres da população. Considerou também, na escolha destes municípios, a viabilidade operacional de cada localidade e a própria adesão do município à proposta.
Entretanto, estes critérios não têm sido inteiramente observados, na medida que finalidades de cunho eleitoral vêm se impondo, como é o caso da inclusão de municípios do Estado do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que estados como Amazônia, Rondônia e Roraima, aonde situam-se bolsões de pobreza ainda mais extremos, ficaram excluídos (Burlandy, 1998).
Por definição, o Programa não tem um caráter executivo, procurando articular e coordenar ações entre diversos ministérios. Estes sim, se dividem na tarefa de execução dos diversos programas sociais.
Tal como no caso do CONSEA, a Comunidade Solidária é diretamente vinculada à Presidência da República e constituído por uma Secretaria Executiva, responsável pela articulação e coordenação das ações do governo, além de fazer a interlocução com seu Conselho Consultivo. Seu Conselho é composto por 10 Ministros de Estado e 21 representantes da sociedade civil. No entanto, a constituição do Conselho Consultivo foi um ponto em que se mantiveram debilidades antes já observadas no CONSEA. Pois, embora tenha sido um avanço dar espaço para a participação da sociedade, seus representantes continuaram sendo nomeados pelo Presidente da República, independente de sua representatividade na sociedade e nos grupos sociais de onde são oriundos.
Dentro de seu enfoque social mais abrangente, o Comunidade Solidária definiu uma agenda mínima de prioridades: Ocupação e Renda, Segurança Alimentar, Crianças e Jovens e Desenvolvimento Rural. Com base nestas prioridades as ações do Programa responderiam a sete grandes objetivos: i) Reduzir a mortalidade na infância; ii) Melhorar as condições de alimentação dos escolares e das famílias carentes; iii) Promover ações de saneamento básico e habitação para populações de baixa renda; iv) Estimular a agricultura familiar; v) Apoiar assentamentos rurais; vi) Apoiar o desenvolvimento do ensino fundamental e vii) Gerar ocupação e renda e promover a qualificação profissional.
Para atuar sobre as diferentes áreas que lhe são prioritárias, foi definida a constituição de Comitês Setoriais, encarregados de apresentar propostas para a mencionada agenda mínima.
Foi assim constituído um Comitê Setorial de Segurança Alimentar. Uma das primeiras iniciativas deste Comitê foi realizar um processo de consulta, que culminou com uma reunião ampliada do Conselho, em outubro de 1996, do qual participaram 23 entidades da sociedade civil, entre organizações de movimentos sociais e ONGs e, também, das representações empresariais ligadas ao tema, e mais as representações de oito Ministérios, o secretário de assuntos estratégicos da Presidência da República, o assessor especial da Presidência da República e os Conselheiros da Comunidade Solidária. O objetivo desta consulta foi estabelecer os consensos gerais e possíveis com a sociedade, para a programação do trabalho a ser realizado por aquele Comitê.
Os consensos estabelecidos estão na Tabela 15. Ao lado destes "consensos" foi também arrolado um conjunto de propostas para a área, entre as quais, i) fiscalizar os estoques reguladores do governo quanto a seu padrão de qualidade fitossanitário; ii) fortalecer o SISVAN, monitorá-lo e avaliá-lo; iii) firmar o Projeto FAO/INAN de fortalecimento institucional do INAN (Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde); iv) atualizar o mapa da fome; v) constituir Grupo de Trabalho multisetorial e multidisciplinar para elaborar indicadores de segurança alimentar e nutricional; vi) estudar a viabilidade de isentar ou reduzir o ICMS dos produtos da cesta básica; vii) homogeneizar a definição de cesta básica a fim de permitir um acompanhamento por parte de diferentes organismos e do próprio governo.
Observe-se que, das propostas destacadas acima, apenas aquelas relativas à elaboração dos indicadores e à isenção do ICMS dos produtos da cesta básica foram acolhidas e concluídas. Outras, como a atualização do Mapa da Fome, ainda encontra-se pendente de divulgação. E, a do fortalecimento do INAN resultou no seu contrário, ou seja, a extinção do órgão.
A Comunidade Solidária, como já foi mencionado, atua articulada com os Ministérios da Saúde, Agricultura, Educação e Trabalho. Quatro prioridades são trabalhadas naquilo que se denomina Agenda da Segurança Alimentar e Nutricional:

Atendimento a Crianças e Gestantes Desnutridas, ligado ao Ministério da Saúde;
Programa de Distribuição Emergencial de Alimentos (PRODEA), ligado ao Ministério da Agricultura e do Abastecimento, através da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB);
Programa Nacional de Alimentação do Escolar (Merenda Escolar), ligado ao Ministério da Educação;
Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), ligado ao Ministério do Trabalho.

Atendimento a Crianças e Gestantes Desnutridas
Inicialmente a prioridade da Comunidade Solidária foi dada ao Programa de Atendimento ao Desnutrido e a Gestante em Risco Nutricional - "Leite é Saúde". Depois foram incorporadas as chamadas "ações básicas" já desenvolvidas pelo Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), Programa de Atenção Integral à Saúde da Criança (PAISC) e o Programa Nacional de Imunização (PNI), além de novos programas, como o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS) e o Programa de Saúde da Família (PSF).
Conforme relata Burlandy (1998), dentro desta definição mais abrangente, o programa "Leite é Saúde" é o único que possui característica distinta, enquanto suplementação alimentar. O atendimento a crianças desnutridas e gestantes em risco nutricional exige dos serviços de saúde envolvidos um monitoramento sistemático. Sem dúvida, a distribuição de alimentos é um atrativo que funciona para a ampliação e preservação do público que procura as Unidades de Saúde. Mas estes programas também têm sido marcados por frequente descontinuidade, prejudicando o prosseguimento do trabalho que se pretende realizar.
Nesse sentido, mostra-se controverso, quanto a sua capacidade de corresponder ao que se espera, dentro do atendimento que presta, além de poder se constituir em um instrumento de barganha política para o Governo Federal, enquanto repassador para os municípios.
Contudo, os resultados parecem positivos, quando o programa é avaliado pelo indicador da mortalidade infantil. Mas, a redução de 43% na mortalidade infantil, entre 1994 e 1997, nos municípios onde foi implantado o Programa, é atribuída, principalmente, ao trabalho realizado pelos agentes comunitários de saúde e pelas equipes de médicos de família, que atendem aproximadamente 25 milhões de pessoas em 700 municípios, concentrados na região Nordeste (principalmente, Alagoas, Ceará, Piauí e Maranhão).
Merece ainda menção os avanços que vêm sendo obtidos na difusão da prática do aleitamento materno exclusivo nos primeiros 4 a 6 meses de vida, indicando os acertos do Programa Nacional de Incentivo ao Aleitamento Materno (PNIAM), coordenado pelo extinto INAN. Isto, porém, não deve encobrir a baixíssima adesão a esta prática, ainda predominante no país.

Programa de Distribuição Emergencial de Alimentos (PRODEA)
Vem desde a década de sessenta, a prática de distribuição de cestas básicas para as populações em situação de risco nutricional, principalmente em socorro aos atingidos pela seca no Nordeste. Durante as décadas de setenta e oitenta sucederam-se diversos programas de distribuição de alimentos (Programa de Suplementação Alimentar/INAN, Programa de Complementação Alimentar/LBA e Programa Tíquete do Leite), sempre muito questionados por suas características de descontinuidade, hipercentralização e pelo aproveitamento político obtido a partir de práticas clientelistas e assistencialistas.
Após a descontinuidade dos Programas Alimentares, que marcaram o governo Collor, retomou-se a distribuição de cestas básicas, no governo Itamar Franco, fazendo-se uso de estoques públicos de alimentos. É então criado o PRODEA, como a forma mais imediata de enfrentamento do que fora demonstrado pelo Mapa da Fome e que foi mantido pelo governo FHC.
Como observa Valente (1996), a grande novidade do PRODEA foi a criação de Comissões Municipais de Acompanhamento, uma forma clara de democratização da gestão e controle, na qual - teoricamente - estão integrados representantes de sindicatos rurais, associações, igrejas etc.
Apesar do avanço na concepção deste programa, persistem uma série de denúncias de clientelismo, aproveitamento eleitoral, corrupção, ineficiência, assistencialismo e de causar prejuízos aos produtores e comerciantes dos municípios contemplados. Isto demonstra a dificuldade que é sempre inerente a qualquer programa de distribuição de alimentos. A via da constituição das Comissões parece ser vital para que a gestão destes programas seja feito da forma mais transparente possível. Mas, há de se considerar também o tempo necessário para que a sociedade nestes municípios mais carentes consiga amadurecer politicamente e garantir uma comissão vigilante e independente do poder local.
Segundo informação da CONAB, o PRODEA distribuiu, em 1997, um total de quase 15 milhões de cestas a 1,5 milhão de famílias nos municípios do Comunidade Solidária, além de também atender a 90 mil famílias de sem-terra, em 903 acampamentos e 48 mil famílias de indígenas, de 396 aldeias em situação de carência alimentar.
É inegável que este é o programa que traz maiores dividendos políticos para o governo, por tratar-se daquele de maior visibilidade.

Programa Nacional de Alimentação do Escolar (Merenda Escolar)
A merenda escolar, entre os programas de distribuição de alimentos, é aquele que mais se justifica, na medida que atende ao universo da população infantil matriculada em escolas públicas. Além disso tem a contrapartida de manter crianças estudando, frequentemente por conta da merenda fornecida pela escola.
O governo Fernando Henrique tem anunciado como principal meta em relação a este programa, sua total descentralização, repassando para os municípios a responsabilidade de sua gestão e ficando para o Governo Federal apenas a dotação e repasse dos recursos. No entanto, é neste ponto que os maiores problemas tem acontecido, com freqüentes atrasos no repasse aos municípios.
Segundo dados oficiais, foi destinado à merenda escolar, em 1997, um total de R$ 670 milhões, atendendo 35 milhões de crianças. Os municípios prioritários da Comunidade Solidária consumiram cerca de 29% do total aplicado no país.
Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT)
Atinge cerca de 9,5 milhões de trabalhadores, sendo que 84% deles recebem até oito salários mínimos. Trabalha com três modalidades de atendimento: serviços de refeições industriais, de cestas de alimentos/tíquetes alimentação e tíquetes refeição.
Cobertura dos Programas da Agenda Básica

Na Tabela 16 apresenta-se um resumo da cobertura dos programas da Agenda Básica, em termos dos recursos aplicados, o número de beneficiários e de recursos humanos empregados.
Conforme foi reconhecido no Relatório das Ações Governamentais de 1997, sobre o Programa da Comunidade Solidária, foram constantes os atrasos na liberação de recursos previstos em orçamentos, com evidentes prejuízos sobre os programas.
A proposta de orçamento para 1998 implicou em redução de 11% nos recursos destinados ao Orçamento de Segurança Alimentar, correspondente a 1,5 bilhão de reais.



Participação brasileira na Cúpula Mundial de Alimentação


Em 1996, por força do processo de preparação da participação brasileira para a Cúpula Mundial de Alimentação, foi constituído um Grupo de Trabalho com representantes do governo e da sociedade civil, para a elevação do Documento brasileiro a ser levado à Cúpula. De um lado, a constituição deste grupo representou uma abertura do governo (assim recomendada pela FAO) no sentido de uma participação da sociedade naquele evento. Com base em um árduo trabalho, o GT logrou produzir um documento de qualidade apreciável, em que pese as diferenças encontradas em algumas posições do governo e aquelas da sociedade civil.
O desfecho lamentável foi o fato do governo nunca ter assumido este documento, que não foi publicado e divulgado e sequer considerado em seu conteúdo no pronunciamento do chefe da delegação brasileira na Cúpula Mundial de Alimentação, o então Ministro da Agricultura, Arlindo Porto.
A extinção do INAN
A extinção do INAN marcou um dos equívocos mais notórios do governo Fernando Henrique Cardoso, na área da segurança alimentar e nutricional. Esta decisão não se justificou por alguma lógica de reorganização deste setor, mas pela necessidade de exibir "resultados" dentro da política de "enxugamento" dos órgãos do governo. Não se seguiu nenhuma medida que reorganizasse o corpo técnico e garantisse a continuidade dos programas que eram subordinados ao INAN, como o de combate às carências de iodo, ferro e vitamina A e do programa de estímulo ao aleitamento materno. Somente agora, o Ministério da Saúde parece conseguir lograr uma nova reordenação, que poderá permitir a continuidade daqueles programas.
A reorganização do Ministério da Saúde na área de nutrição somente se iniciou mais de um ano após a extinção do INAN. Presentemente está ocorrendo discussão interna sobre uma nova proposta de Política Nacional de Alimentação e Nutrição, no âmbito do ministério. Isto já corresponde à tentativa que se faz, de reordenação da área de alimentação e nutrição. 

Fonte: * Economista, Coordenador da Área "Sociedade Sustentável" e membro da Rede Interamericana Agricultura e Democracia (RIAD)

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