quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O ENEM e a queda do ensino de qualidade


Luis Augusto FischerO Luis Augusto Fischer (na foto), escritor e professor de literatura no Rio Grande do Sul, escreveu um pequeno artigo para o Prosa e Verso de ontem, tratando de um tema que já trouxe aqui para o blog: as contradições entre o ENEM e o ensino, no Brasil recente, desde a adoção do sistema como a principal ponte para o ensino superior.






Fischer coloca que um dos pontos positivos do ENEM está na adoção de “programas multidisciplinares que tendem a abolir questões dependentes de mera decoreba e a propor outras mais criativas, que privilegiam a leitura atenta e o raciocínio”. Concordo plenamente. Isso não garante que o candidato vá ser honesto em seu trabalho, mas certamente premia aquele que aprofunda mais os estudos, saindo das cartilhas para avançar nas reflexões.

Outro ponto importante abordado pelo autor é a consequência mais direta da quase universalização do exame. Isso passa a impor, segundo Fischer, “a existência de um mercado nacional que tem gerado concentração de vagas, para os cursos mais procurados, na mão de candidatos das regiões mais ricas, que em regra oferecem ensino mais exigente”. Em outras palavras, os melhores cursinhos preparam melhor aqueles que podem pagar, o que caminha na contramão de um vestibular que contemple a todos de maneira semelhante. Isso tem muito a ver com a falência do ensino público de base, que, se tivesse a coordenação política correta, teria a qualidade necessária para preparar a todos com o mesmo rigor, o que diminuiria o abismo entre ricos e pobres nesse quesito.

O principal ponto citado pelo autor aparece quando ele fala sobre aquela que, ao meu ver, é a consequência mais grave dessa universalização do ENEM: “os vestibulares passaram a ser o paradigma maior do ensino médio. O que cai no vestibular entra no programa de ensino da escola; o que não cai, deixa de existir, com raríssimas exceções”. E então o escritor lista alguns dados sobre o que o ENEM tem pedido nos últimos concursos, em literatura. Há dados que não surpreendem, como a maior aparição do período modernista e de autores como Drummond e Machado de Assis. Isso, na minha concepção, não apresenta maiores problemas. Mas há registros assustadores. Por exemplo: enquanto os contos aparecem em 3% das questões, as histórias em quadrinhos surgem em 19% delas. Um absurdo completo. Outra: Jim Davies, criador do Garfield, aparece citado mais vezes que o poeta João Cabral de Melo Neto. Inconcebível. E uma última: enquanto as letras de canções aparecem em 42% das questões, os romances não passam de 19%.

Tudo isso se reflete na maneira como os colégios modulam os seus projetos de ensino, na medida em que a quantidade de alunos aprovados no ENEM passou a ser uma peça de marketing fundamental na luta pelos alunos-clientes, no novo sistema educacional privado, pautado exclusivamente pelo lucro e pelo curso prazo. A escola perde a oportunidade de ser uma formadora de cidadania, ética e consciência política, e se entrega ao mais deslavado pragmatismo de resultados imediatos, pragmatismo esse balizado pelo parâmetro meramente quantitativo dos alunos que garantem vaga na faculdade através do conteúdo problemático da prova.

Fischer cita a importância da literatura culta na formação dos estudantes e a diminuição desse tipo de conteúdo no trabalho de sala de aula, pelos professores, que seria proporcional aos movimentos do ENEM nesse sentido. E completa seu texto dizendo que “estamos caminhando para programas de literatura no ensino médio desencarnados, sem densidade cultural, tendo no centro princípios abstratos que parecem poder ser atendidos praticamente sem leitura direta dos textos literários. Nada auspicioso para quem quer formar leitores destros e cultos, e por isso autônomos”.

É o grande problema dessa celeuma toda e um ponto que tenho debatido bastante nos últimos tempos. Quanto mais os colégios se especializam em cobrar dos alunos apenas o que cai no ENEM, mais os alunos perdem em complexidade em seu ensino, e menos leem a verdadeira literatura, a produção culta na história do texto literário, que tem como principal objetivo exercitar o pensamento poético e artístico na cabeça dos jovens, para que eles saiam da escola pessoas melhores, cidadãos mais críticos, pessoas mais inteligentes. É o mercado, definitivamente tomando conta da educação brasileira e pondo a perder a possibilidade de se educar mais uma geração para a complexidade, principal requisito para a mentalidade crítica e o pensamento abstrato. Uma pena… mas continuamos lutando nas guerrilhas…


*Marcelo Henrique Marques de Souza é do Rio de Janeiro. Ele mesmo declara: “Sou escritor e professor de um monte de coisa ligado às ciências que chamam de “humanas”, como se houvesse alguma ciência de cachorro. Ensino (e aprendo) filosofia, redação, literatura, ética e cidadania e preparação de monografia, no ensino fundamental 2, ensino médio, graduação de pedagogia e pós-graduação em ‘educação e comunicação’ e ‘psicopedagogia’. Meus textos são ensaios e artigos críticos da lógica ocidental, que se baseia na tríade patética que mistura a sacanagem do mercado (a propaganda incluída), a hipocrisia do cristianismo e a falácia dos racionalismos. É contra isso que busco a impostura da crítica”.

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