segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Órfãos do Eldorado - Milton Hatoum - UNIR


Milton Hatoum está no auge. O leitor do presente talvez não saiba o que é isso. A literatura brasileira esteve no seu auge entre o fim do século XIX, início do século XX, com Machado de Assis e Euclides da Cunha; depois, em algum momento, entre os anos 30, a partir da Segunda Geração Modernista, passando pela Geração de 45, e os anos 60, com João Cabral e Guimarães Rosa (antes da invasão do audiovisual). E depois? Nunca mais? Sem uma resposta que não ofenda as gerações de 70, 80 e até 90, a literatura brasileira vive outro grande momento agora, com Milton Hatoum. Depois de ler Dois Irmãos (2000), Cinzas do Norte (2005) e, neste instante, Órfãos do Eldorado (2008) é impossível não situar a produção de Milton Hatoum na melhor tradição da literatura brasileira. Lemos Órfãos do Eldorado e temos a sensação, raríssima, de que a literatura brasileira fala, novamente, conosco. Repetindo: isso não acontece todos os anos; nem, às vezes, todas as décadas — mas só algumas vezes, a cada século... Órfãos do Eldorado faz parte da Coleção Mitos da Companhia das Letras, provando que é possível também produzir obras-primas sob encomenda. Milton Hatoum funde os mitos do Eldorado, do título, com o da Cidade Encantada, no seu cenário preferido, Manaus e a região amazônica. Condensando alguns elementos que aprendeu a dominar, Milton Hatoum escreveu suas Memórias do Subsolo, costurando uma história de sobrevivência, um grande amor, o poder, o lirismo, a poesia e a decadência. Através de uma linguagem que é sua marca registrada, dando voz a uma civilização renegada por nossos homens de letras, no Norte do Brasil. Num País sério, como diria Paulo Francis, Milton Hatoum mereceria honras de chefe de estado — e todo o nosso respeito devido ao grande escritor. >>> Órfãos do Eldorado

Julio Daio Borges

Saudades de um lugar que nunca existiu
Milton Hatoum é, sem sombra de dúvida, um dos mais talentosos escritores brasileiros da atualidade. Um dado ajuda a entender o impacto desse manauense na literatura nacional: seus três livros até agora lançados, todos eles, foram vencedores do prestigiado Prêmio Jabuti. Órfãos do Eldorado é seu quarto livro publicado.

A novela continua as obras anteriores no sentido de que desvenda a vida, a história e os modos da região Norte, um pedaço do país desconhecido dos próprios brasileiros. É ali, num cenário rodeado de água por todos os lados, que se desenrola a vida de Arminto Cordovil, ao qual somente pode ser acrescido o epíteto de “filho de Amando Cordovil”. Perdido entre a exigência de seguir os negócios da família e os prazeres da quase irrestrita liberdade, Arminto usa os espaços de sua vida vazia para contar lendas e mitos amazônicos, contos de botos que engravidam virgens e mulheres que largam o mundo para viver numa cidade encantada, no fundo do rio. E a narrativa funde essas instâncias: a real, onde Arminto luta contra a figura do pai, que o subjuga em todos os sentidos, onde ele desenvolve sua relação ambígua com Florita, mulher que o criou, onde ele escuta conselhos do advogado Estiliano; e aquela outra, quase que sobrenatural, onde ele se perde na obsessão por uma órfã misteriosa.

Comparado a Cinzas do Norte ou a Dois Irmãos, obras anteriores de Hatoum, impressionantes por sua delicadeza, Órfãos do Eldorado parece diminuído. Talvez pelo formato bem mais conciso, que não permitiu ao autor desenvolver toda a sua habitual sutileza. O resultado é que livro não convence o quanto poderia, e não emociona. Bem escrito, mas sem alma, apóia-se na nostalgia que permeia o olhar de Hatoum sobre sua região, sobre as lembranças de um tempo/lugar muito peculiar.

Talvez porque o personagem principal não chegue a criar empatia, o elemento mais fundamental da história seja a Água. É ela que fornece modo de vida à família Cordovil, que permite a fusão dos imigrantes estrangeiros e dos índios, é na água que Arminto deposita histórias de infância, esperanças e desassossegos de amor. Tudo sempre ocorre tendo a água por testemunha. Mas a água é fugidia, assim como as chances que Arminto deixa passar. Pode ter sido essa a chance que a obra deixou passar: a de unir a fluidez natural, mansa, das letras de Hatoum com sua capacidade de dialogar, partindo de um microcosmo, com os sentimentos mais universais.

Resumindo

A história é narrada por Arminto Cordovil que, velho e sozinho, às margens do rio Amazonas, relata a um viajante a trajetória de sua própria vida, que começa marcada pela morte: “Até hoje recordo as palavras que me destruíram: Tua mãe te pariu e morreu”. Criado pelo pai, que parece lhe culpar pela morte da esposa, ele mais parece um bastardo do que um filho legítimo; é, pois, duplamente órfão. Quando herda as propriedades e a empresa do pai, Amando Cordovil, grande capitalista que fez fortuna durante o Ciclo da Borracha, Arminto se mostra sem capacidade e sem disposição para administrar a herança, o que o conduz do luxo à pobreza. Seu amor por uma índia-orfã, Dinaura, não só não se concretiza como o faz delirar e aos poucos, o sonho se torna uma espécie de obsessão: “passava o dia fugindo dessas coisas irreais, absurdas, mas que pareciam tão vivas que me davam medo”. Arminto, então, começa a desejar ir para outro lugar, para um Paraíso: “Vou embora para outra terra, encontrar uma cidade melhor. Para onde olho, qualquer lugar que o olhar alcança, só vejo miséria e ruínas”.Arminto nasce enquanto a mãe morre, acontecimento que marca sua vida para sempre.

Ele é o pária em busca de identidade. Recriminado pelo pai e único herdeiro da rica família Cordovil, o protagonista é criado por Florita, espécie de segunda mãe que o familiariza com o cotidiano dos índios que moram perto. Desde pequeno, ouve as histórias fantásticas que habitam as margens do caudaloso rio, alimentando seus desejos e se afastando da trajetória familiar. A história se desenrola em largas zonas de sombra.

Nos intervalos de seu relato, Arminto dá largos goles de tarubá, cachaça que ganhou dos índios saterés-maués. O álcool e as distorções que provoca no espírito turvam ainda mais sua razão. Mas nem as lendas aplacam sua dor. “O medo se intrometeu na saudade que eu sentia de Dinaura”, Arminto diz. Numa visita tardia à fazenda do pai, ele entende a origem de seu mal. “Não era o lugar que me perturbava, era a lembrança do lugar.” Portanto, no centro da trama tem-se a paixão louca de Arminto por Dinaura, uma menina criada pelas freiras carmelitas e cuja história guarda um segredo, que só ao final vai, em parte, se revelar. Paixão que, no dizer de Florita, o deixa “com o demônio no coração”.

Quando Arminto Cordovil cruza seus olhos com os de Dinaura, reconhece que sua vida mudaria. E mudou. Toda a novela de Milton Hatoum é a história dessa mudança. Mas uma mudança que não consegue extirpar o passado: ele prossegue, resiste, prolonga-se pelas artimanhas da memória. Depois de uma noite de amor com Arminto, a moça desaparece. Sua ausência é encoberta por lendas de mulheres que, seduzidas por botos, cobras e sapos, foram arrastadas para uma cidade mágica, submersa no Amazonas. A vida de Arminto se esfarela. Um desastre lhe tira o cargueiro alemão Eldorado. A falência, o palacete branco, em Vila Bela, última herança do pai. Traz o pensamento inchado pelo silêncio de Dinaura. “Eu me acostumei com o silêncio e com a voz que eu só ouvia nos sonhos.” Resta-lhe suportar a inconstância da moça e os estragos que provocou em seu coração. Eternamente apaixonado pela mesma mulher, vive em sua busca, e, em cada passo pelas trilhas errantes das matas ou cidades vizinhas, sofre com as conseqüências das falcatruas do velado pai, homem frio e desconhecido.

O desencanto provocado pelas irrealizações o deixa à beira da loucura, mas, auxiliado por Estiliano, melhor amigo de seu pai, o protagonista suporta as muitas perdas e alcança a paciência proporcionada pela maturidade. Antes de morrer, Arminto encontra forças para narrar sua inconstante história, aludindo sutilmente ao sentimento de abandono do homem contemporâneo.Na casa elegante em Manaus ou no palacete de Vila Bela, Amando nutre fantasias de proprietário e armador, que seu filho único, Arminto, teima em minar. Entre esses extremos que mal se tocam, uma galeria notável de mulheres. Angelina, a mãe morta; Florita, o anjo da guarda morena; Estrela, a bela sefardita e os homens de Estiliano, o advogado grego, a Denísio Cão, o barqueiro infernal que vivem na própria pele o fausto e os conflitos do ciclo da borracha nos anos que antecedem a Primeira Guerra Mundial. E, no centro de tudo, Dinaura, corpo estranho entre as órfãs das Carmelitas em Vila Bela, moça que parece filha do mato, lê romances, enfeitiça Arminto e sonha com a Cidade Encantada, a Eldorado submersa de que tanto se fala à beira do rio Amazonas.

Nota-se, portanto, que Órfãos do Eldorado é inspirado no mito amazônico da cidade encantada de Eldorado, um paraíso que existiria no fundo de algum dos rios da região, segundo lendas locais. Na novela de Milton Hatoum, Eldorado é também um barco da companhia da família Cordovil que afunda e leva a firma à falência. Os dois Eldorados - o fictício, que representa um lugar ideal, e o real, que é uma grande tragédia material - constituem uma presença forte na vida dos personagens, em sua busca pela felicidade. Uma busca sempre frustrada, pois o percurso que leva ao idílio da cidade desaparecida (representada pelo amor romântico e pela harmonia filial) exige a provação de uma catástrofe. Arminto, em sua narrativa repleta de lacunas e pontos obscuros, torna-se refém dessas contradições de Eldorado. A história em que todos se enredam é a crônica de violência, fausto e tragédia na Amazônia entre a Cabanagem e o fim do ciclo da borracha. O que há de mais interessante no novo livro de Hatoum são os paralelismos que se podem apreender da narrativa. A tragédia grega de Arminto se confunde, e muito, com o fim da pujança do extrativismo da borracha, então a nova riqueza do país, e a desilusão de uma nação próspera, saqueada por interesseiros e corruptos oportunistas. Amando, o pai, enriquece com as conveniências oferecidas pela primeira corrida da história provocada não por um minério, mas por uma planta. Dono de uma empresa de navegação, colabora com as tramóias de homens oportunistas enquanto distribui esperanças à população de Vila Bela, cidade ficcional inspirada na verdadeira Parintins.

Milton Hatoum não abandona as mazelas sociais. Ao narrar a utopia de uma elite indigna, o autor acaba retratando o desenredo de uma sociedade. “Queria ser diferente, mas uma sombra do meu pai estava dentro de mim, como um caroço numa fruta podre”, diz o protagonista.Pela divagação psicológica, pode-se enxergar, guardadas as devidas proporções, uma similaridade entre Arminto Cordovil e Bentinho (Dom Casmurro). Ambos são homens velhos que recontam seu passado. O estilo de Hatoum tem um eco machadiano: narrativa clássica, precisa e escorreita. Mas, se fosse possível fazer uma aproximação, Órfãos do Eldorado lembra muito Fogo morto, saga épica e clássico de José Lins do Rego - embora o Hatoum refute o conceito de que sua obra seja regionalista, pois ao contrário, há, na obra, um efeito que se costuma encontrar nos grandes livros: o movimento do particular para o universal. E essa transição do individual para o coletivo se realiza por meio do mito.

Como personagem de fundo, o Rio Amazonas, que, com seu peso e obscuridade, lhe serve de cosmos. E ainda a cidade de Manaus, desde os primeiros colonizadores confundida com o Eldorado. A Amazônia é um mundo em que as palavras fracassam. Em que elas só resistem na forma mole dos mitos.

Fonte: passeiweb

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