sábado, 24 de setembro de 2011

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE



Drummond, tradutor “Deus sabe como”

Publicação revela detalhes ocultos da produção de Drummond

LUÍS ANTÔNIO GIRON

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ENGAJADO  O poeta Carlos Drummond de Andrade em 1951, ano em que planejava reunir suas traduções de poemas sociais em livro. O volume que sai agora inclui o poema do espanhol Federico García Lorca (à dir.), publicado na revista Esfera, nos anos 1940  (Foto: acervo CDA) 
Quanto mais produtivo o autor, maior a probabilidade de que fique para a posteridade o trabalho de organizar seu material. Por essa razão óbvia, as obras dos escritores se tornam campo aberto à pesquisa e às especulações póstumas. Uma “obra completa” não passa de uma construção contestada e refeita de geração em geração. As marginálias dos escritores renomados surgem à medida que suas obras despertam interesse. O sonho dos estudiosos é conseguir que a marginália altere as ideias adquiridas sobre os textos principais do escritor, o seu cânone.
Não surpreende, portanto, que a obra do mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), um dos poetas basilares da língua portuguesa, continue a estimular o apetite da posteridade. Sua “obra completa” – 45 títulos publicados em vida – acaba de trocar de editora. Por vontade dos herdeiros, ela passou da editora Record para a Companhia das Letras. A reedição de Drummond começará a sair em 2012, com novos estudos sobre sua produção, além de uma prometida e gorda marginália.
Impulsionada pela movimentação, a editora CosacNaify se adianta com um título inédito: Poesia traduzida (448 páginas, R$ 78). A organização e as notas, dos professores Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães, são resultado de uma pesquisa realizada na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, depositária do arquivo Drummond. O trabalho, que durou cinco anos, revelou uma dimensão meio oculta na produção drummondiana: a do tradutor de poesia. São 64 textos compilados em jornais e revistas entre os anos 1940 e 1960, feitos diretamente do espanhol, do francês e do inglês e, indiretamente, de poemas alemães, noruegueses e poloneses.
A edição poderia consistir apenas no ajuntamento de uma produção eventual e sem importância. Até porque o próprio Drummond se definia como um “tradutor Deus sabe como”, “bissexto” e “jornalístico”. Muitos textos ele verteu por necessidade econômica, como os poemas curtos das americanas Dorothy Parker e Carmen Bernos de Gasztold, por encomenda da revista Seleções do Reader’s Digest. O volume, no entanto, contém duas descobertas que realizam o sonho de qualquer investigador de marginália. A primeira é que Drummond pretendia lançar uma coletânea de traduções, que intitularia Poesia errante (traduções). Massi e Guimarães encontraram a referência à obra, jamais publicada, na primeira edição de Claro enigma (1951).
O projeto o levou a trabalhar intensamente com tradução, com ótimos resultados. Nos anos 1940 e 1950, além de verter romances franceses como Ligações perigosas, de Chordelos de Laclos, eA fugitiva, de Marcel Proust, Drummond colaborou semanalmente para o suplemento literário doCorreio da Manhã, traduzindo e elaborando ensaios sobre poetas. Revisou muitas de suas traduções ao longo da carreira. Os pesquisadores buscaram nesses perió­dicos os textos que, supõem, comporiam o volume. A segunda descoberta, mais importante, está na escolha que Drummond fez dos poemas que traduziu. Ela permite redimensionar suas influências e seu perfil intelectual.
Era crença que a influência de Drummond repousava apenas na poesia francesa, sobretudo poetas não alinhados a “ismos”, como André Verdet (1913-2004) e Charles Vildrac (1882-1971). Ele traduziu poemas desses autores, que constam da compilação. Mas os pesquisadores descobriram outras preferências do autor. Uma delas é pelo romanceiro da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), um gênero popular que serviu como veículo de informação e protesto nos anos da ditadura franquista. “Acreditava-se que Drummond havia rompido de maneira brusca com a militância de esquerda, a partir de Claro enigma”, diz Massi. “Mas foi um processo lento, que ele misturou ao trabalho literário.” Massi afirma que Drummond queria reunir poemas militantes franceses e alemães, como os de Paul Claudel e Bertolt Brecht, e de espanhóis, como Federico García Lorca (1898-1936). “Ele não foi um intelectual retraído e afrancesado, e sim um entusiasta da poesia social”, diz. Outra surpresa foi como Drummond se dedicou ao precursor do surrealismo Guillaume Apollinaire (1880-1918). O poeta mineiro se debruçou sobre poemas densos como “A casa dos mortos”, de 1913, e “Colinas”, de 1918. “As traduções dos poemas de Apollinaire revelam um tradutor de altíssima qualidade, um mestre”, diz Guimarães.
Assim, contrariando a imagem consagrada, Drummond sofreu tanto influência francesa como espanhola. Adotou e expandiu em seus textos a forma do romanceiro, com redondilhas e versos livres, e abordou temas semelhantes aos dos poetas sociais e surrealistas de seu tempo. “O exame dessas traduções vai alterar a leitura de Drummond”, afirma Massi. “Ao atingir a maturidade, converteu sua poesia em um meio de resistência ao totalitarismo e de reflexão sobre o mundo.” Por isso, Drummond deve ser reconhecido como um homem que traduziu seu tempo. Um poeta universal.

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