ÉTICA
A ética é uma característica inerente a toda ação humana e, por esta razão, é um elemento vital na produção da realidade social. Todo homem possui um senso ético, uma espécie de "consciência moral", estando constantemente avaliando e julgando suas ações para saber se são boas ou más, certas ou erradas, justas ou injustas.
Existem sempre comportamentos humanos classificáveis sob a ótica do certo e errado, do bem e do mal. Embora relacionadas com o agir individual, essas classificações sempre têm relação com as matrizes culturais que prevalecem em determinadas sociedades e contextos históricos.
A ética está relacionada à opção, ao desejo de realizar a vida, mantendo com os outros relações justas e aceitáveis. Via de regra está fundamentada nas idéias de bem e virtude, enquanto valores perseguidos por todo ser humano e cujo alcance se traduz numa existência plena e feliz.
O estudo da ética talvez tenha se iniciado com filósofos gregos há 25 séculos atrás. Hoje em dia, seu campo de atuação ultrapassa os limites da filosofia e inúmeros outros pesquisadores do conhecimento dedicam-se ao seu estudo. Sociólogos, psicólogos, biólogos e muitos outros profissionais desenvolvem trabalhos no campo da ética.
Ao iniciar um trabalho que envolve a ética como objeto de estudo, consideramos importante, como ponto de partida, estudar o conceito de ética, estabelecendo seu campo de aplicação e fazendo uma pequena abordagem das doutrinas éticas que consideramos mais importantes para o nosso trabalho.
PROBLEMAS MORAIS E PROBLEMAS ÉTICOS
A ética não é algo superposto à conduta humana, pois todas as nossas atividades envolvem uma carga moral. Idéias sobre o bem e o mal, o certo e o errado, o permitido e o proibido definem a nossa realidade.
Em nossas relações cotidianas estamos sempre diante de problemas do tipo: Devo sempre dizer a verdade ou existem ocasiões em que posso mentir? Será que é correto tomar tal atitude? Devo ajudar um amigo em perigo, mesmo correndo risco de vida? Existe alguma ocasião em que seria correto atravessar um sinal de trânsito vermelho?
Os soldados que matam numa guerra, podem ser moralmente condenados por seus crimes ou estão apenas cumprindo ordens?
Essas perguntas nos colocam diante de problemas práticos, que aparecem nas relações reais, efetivas entre indivíduos. São problemas cujas soluções, via de regra, não envolvem apenas a pessoa que os propõe, mas também a outra ou outras pessoas que poderão sofrer as conseqüências das decisões e ações, conseqüências que poderão muitas vezes afetar uma comunidade inteira.
O homem é um ser-no-mundo, que só realiza sua existência no encontro com outros homens, sendo que, todas as suas ações e decisões afetam as outras pessoas. Nesta convivência, nesta coexistência, naturalmente têm que existir regras que coordenem e harmonizem esta relação. Estas regras, dentro de um grupo qualquer, indicam os limites em relação aos quais podemos medir as nossas possibilidades e as limitações a que devemos nos submeter. São os códigos culturais que nos obrigam, mas ao mesmo tempo nos protegem.
Diante dos dilemas da vida, temos a tendência de conduzir nossas ações de forma quase que instintiva, automática, fazendo uso de alguma "fórmula" ou "receita" presente em nosso meio social, de normas que julgamos mais adequadas de serem cumpridas, por terem sido aceitas intimamente e reconhecidas como válidas e obrigatórias. Fazemos uso de normas, praticamos determinados atos e, muitas vezes, nos servimos de determinados argumentos para tomar decisões, justificar nossas ações e nos sentirmos dentro da normalidade.
As normas de que estamos falando têm relação como o que chamamos de valores morais. São os meios pelos quais os valores morais de um grupo social são manifestos e acabam adquirindo um caráter normativo e obrigatório. A palavra moral tem sua origem no latim "mos"/"mores", que significa "costumes", no sentido de conjunto de normas ou regras adquiridas por hábito. Notar que a expressão "bons costumes" é usada como sendo sinônimo de moral ou moralidade.
A moral pode então ser entendida como o conjunto das práticas cristalizadas pelos costumes e convenções histórico-sociais. Cada sociedade tem sido caracterizada por seus conjuntos de normas, valores e regras. São as prescrições e proibições do tipo "não matarás", "não roubarás", de cumprimento obrigatório. Muitas vezes essas práticas são até mesmo incompatíveis com os avanços e conhecimentos das ciências naturais e sociais.
A moral tem um forte caráter social, estando apoiada na tríade cultura, história e natureza humana. É algo adquirido como herança e preservado pela comunidade.
Quando os valores e costumes estabelecidos numa determinada sociedade são bem aceitos, não há muita necessidade de reflexão sobre eles. Mas, quando surgem questionamentos sobre a validade de certos costumes ou valores consolidados pela prática, surge a necessidade de fundamentá-los teoricamente, ou, para os que discordam deles, criticá-los. Adolfo Sánchez VASQUEZ (1995, p. 15) coloca isso de forma muito clara:
A este comportamento prático-moral, que já se encontra nas formas mais primitivas de comunidade, sucede posteriormente - muitos milênios depois - a reflexão sobre ele. Os homens não só agem moralmente (isto é enfrentam determinados problemas nas suas relações mútuas, tomam decisões e realizam certos atos para resolvê-los e, ao mesmo tempo, julgam ou avaliam de uma ou de outra maneira estas decisões e estes atos), mas também refletem sobre esse comportamento prático e o tomam como objeto da sua reflexão e de seu pensamento. Dá-se assim a passagem do plano da prática moral para o da teoria moral; ou, em outras palavras, da moral efetiva, vivida, para a moral reflexa. Quando se verifica esta passagem, que coincide com os inícios do pensamento filosófico, já estamos propriamente na esfera dos problemas teóricos-morais ou éticos.
Ou como bem nos coloca Otaviano PEREIRA (1991, p. 24):
O velho se contrapondo ao novo é o que podemos esperar como conflito saudável para o avanço da moral. Ora, a vida das pessoas não deve ser como uma geladeira para conservas. O ideal é evitar o "congelamento" da moral em códigos impessoais, que vão perdendo sua razão de ser, dado o caráter dinâmico das próprias relações.
O mesmo autor prossegue:
A interação dialética entre o que é constituído (a moral vigente) e o constituinte (a moral sendo repensada e recriada) é necessária à sobrevivência tanto da própria moral como da respiração dos indivíduos frente a ela. A dança dos valores entra nessa intenção e na hierarquia que eles implicam. Na hierarquia dos valores é a relatividade dos mesmos que se deve enfatizar, já que o sufocamento do indivíduo pela absolutização do que está estabelecido é o perigo maior que se deve evitar. Falar em valores e na sua relatividade diante da dinâmica que aí se estabelece é referir-se necessariamente a uma crise em geral permanente, advinda das relações entre o vivido e o herdado. É bom sempre tirarmos proveito disso, fazer dessa crise algo saudável. Acontece que nossa ânsia benfazeja em mudar, recriar o mundo se esbarra no fato moral natural de que, quando criamos regras, normas de conduta ou leis, nós as imaginamos como um bem permanente [!]. (ibid., p.24)
Como podemos entender então o conceito de ética? A ética, tantas vezes interpretada como sinônimo de moral, aparece exatamente na hora em que estamos sentindo a necessidade de aprofundar a moral. Geralmente a ética apoia-se em outras áreas do conhecimento como a antropologia e a história para analisar o conteúdo da moral. Seria o tratamento teórico em torno da moral e da moralidade.
Uma disciplina originária da filosofia, há muito discutida pelos filósofos de todas as épocas e que se estende a outros campos do saber como teologia, ciências e direito.
DEFINIÇÃO DE ÉTICA
A ética seria então uma espécie de teoria sobre a prática moral, uma reflexão teórica que analisa e critica os fundamentos e princípios que regem um determinado sistema moral. O dicionário Abbagnado, entre outras considerações nos diz que a ética é "em geral, a ciência da conduta" (ABBAGNANO, sd, p.360) e Sanchez VASQUEZ (1995, p.12) amplia a definição afirmando que "a ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou seja, é ciência de uma forma específica de comportamento humano." E reforça esta definição com a seguinte explicação:
Assim como os problemas teóricos morais não se identificam com os problemas práticos, embora estejam estritamente relacionados, também não se podem confundir a ética e a moral. A ética não cria a moral. Conquanto seja certo que toda moral supõe determinados princípios, normas ou regras de comportamento, não é a ética que os estabelece numa determinada comunidade. A ética depara com uma experiência histórico-social no terreno da moral, ou seja, com uma série de práticas morais já em vigor e, partindo delas, procura determinar a essência da moral, sua origem, as condições objetivas e subjetivas do ato moral, as fontes da avaliação moral, a natureza e a função dos juízos morais, os critérios de justificação destes juízos e o princípio que rege a mudança e a sucessão de diferentes sistemas morais. (ibid., p.12)
Os problemas éticos, ao contrário dos prático-morais são caracterizados pela sua generalidade. Por exemplo, se um indivíduo está diante de uma determinada situação, deverá resolvê-la por si mesmo, com a ajuda de uma norma que reconhece e aceita intimamente pois o problema do que fazer numa dada situação é um problema prático-moral e não teórico-ético. Mas, quando estamos diante de uma situação, como por exemplo, definir o conceito de Bem, já ultrapassamos os limites dos problemas morais e estamos num problema geral de caráter teórico, no campo de investigação da ética. Tanto assim, que diversas teorias éticas organizaram-se em torno da definição do que é Bem. Muitos filósofos acreditaram que, uma vez entendido o que é Bem, descobriríamos o que fazer diante das situações apresentadas pela vida. As respostas encontradas não são unânimes e as definições de Bem variam muito de um filósofo para outro. Para uns, Bem é o prazer, para outros é o útil e assim por diante.
Quando na antigüidade grega Aristóteles apresentou o problema teórico de definir o conceito de Bem, seu trabalho era de investigar o conteúdo do Bem e não definir o que cada indivíduo deveria fazer numa ação concreta, para que seu ato seja considerado bom ou mau.
Evidentemente, esta investigação teórica sempre deixa conseqüências práticas, pois quando definimos o Bem, estamos indicando um caminho por onde os homens poderão se conduzir nas suas diversas situações particulares.
A ética também estuda a responsabilidade do ato moral, ou seja, a decisão de agir numa situação concreta é um problema prático-moral, mas investigar se a pessoa pôde escolher entre duas ou mais alternativas de ação e agir de acordo com sua decisão é um problema teórico-ético, pois verifica a liberdade ou o determinismo ao qual nossos atos estão sujeitos. Se o determinismo é total, então não há mais espaço para a ética, pois se ela se refere às ações humanas e se essas ações estão totalmente determinadas de fora para dentro, não há qualquer espaço para a liberdade, para a autodeterminação e, conseqüentemente, para a ética.
A ética pode também contribuir para fundamentar ou justificar certa forma de comportamento moral. Assim, se a ética revela uma relação entre o comportamento moral e as necessidades e os interesses sociais, ela nos ajudará a situar no devido lugar a moral efetiva, real, do grupo social. Por outro lado, ela nos permite exercitar uma forma de questionamento, onde nos colocamos diante do dilema entre "o que é" e o "que deveria ser", imunizando-nos contra a simplória assimilação dos valores e normas vigentes na sociedade e abrindo em nossas almas a possibilidade de desconfiarmos de que os valores morais vigentes podem estar encobrindo interesses que não correspondem às próprias causas geradoras da moral. A reflexão ética também permite a identificação de valores petrificados que já não mais satisfazem os interesses da sociedade a que servem. Jung Mo SUNG e Josué Cândido da SILVA (1995, p. 17) nos dão um bom exemplo do que estamos falando:
Na época da escravidão, por exemplo, as pessoas acreditavam que os escravos eram seres inferiores por natureza (como dizia Aristóteles) ou pela vontade divina (como diziam muitos na América colonial). Elas não se sentiam eticamente questionadas diante da injustiça cometida contra os escravos. Isso porque o termo "injustiça" já é fruto de juízo ético de alguém que percebe que a realidade não é o que deveria ser. A experiência existencial de se rebelar diante de uma situação desumana ou injusta é chamada de indignação ética [o grifo não faz parte do original].
Sendo a ética uma ciência, devemos evitar a tentação de reduzi-la ao campo exclusivamente normativo. Seu valor está naquilo que explica e não no fato de prescrever ou recomendar com vistas à ação em situações concretas.
A ética também não tem caráter exclusivamente descritivo pois visa investigar e explicar o comportamento moral, traço inerente da experiência humana.
Não é função da ética formular juízos de valor quanto à prática moral de outras sociedades, mas explicar a razão de ser destas diferenças e o porque de os homens terem recorrido, ao longo da história, a práticas morais diferentes e até opostas.
ÉTICA E HISTÓRIA
A ética aceita a existência da história da moral, tomando como ponto de partida a diversidade de morais no tempo, entendendo que cada sociedade tem sido caracterizada por um conjunto de regras, normas e valores, não se identificando com os princípios e normas de nenhuma moral em particular nem adotando atitudes indiferentes ou o ecléticas diante delas. A história da ética é um assunto complexo e que exige alguns cuidados em seu estudo.
Cumpre advertir, antes de tudo, que a história da ética como disciplina filosófica é mais limitada no tempo e no material tratado do que a história das idéias morais da humanidade. Esta última história compreende o estudo de todas as normas que regularam a conduta humana desde os tempos pré-históricos até os nossos dias. Esse estudo não é só filosófico ou histórico-filosófico, mas também social. Por este motivo, a história das idéias morais - ou, se prefere eliminar o termo "história", a descrição dos diversos grupos de idéias morais - é um tema de que se ocupam disciplinas tais como a sociologia e antropologia. Ora, a existência de idéias morais e de atitudes morais não implica, porém, a presença de uma disciplina filosófica particular. Assim, por exemplo, podem estudar-se as atitudes e idéias morais de diversos povos primitivos, ou dos povos orientais, ou de judeus, ou dos egípcios, etc., sem que o material resultante deva forçosamente enquadrar-se na história da ética. Em nossa opinião, por conseguinte, só há história da ética no âmbito da história da filosofia. Ainda assim, a história da ética adquire, por vezes, uma considerável amplitude, por quanto fica difícil, com freqüência, estabelecer uma separação rigorosa entre os sistemas morais - objeto próprio da ética - e o conjunto de normas e atitudes de caráter moral predominantes numa dada sociedade ou numa determinada fase histórica. Com o fim de solucionar este problema, os historiadores da ética limitaram seu estudo àquelas idéias de caráter moral que possuem uma base filosófica, ou seja, que, em vez de se darem simplesmente como supostas, são examinadas em seus fundamentos; por outras palavras são filosoficamente justificadas. Não importa neste caso, que a justificação de um sistema de idéias morais seja extramoral (por exemplo, que se baseie numa metafísica ou numa teologia); o decisivo é que haja uma explicação racional das idéias ou das normas adotadas. Por este motivo, os historiadores da ética costumam seguir os mesmos procedimentos e adotar as mesmas divisões propostas pelos historiadores da filosofia. (MORA, 1996, p.246)
É muito interessante esta variedade de morais no tempo. Friedrich NIETZSCHE (1977, p.99), em seu livro Além do Bem de do Mal, faz uma colocação muito interessante sobre a interminável sucessão das doutrinas éticas, quando diz que "aquilo que numa época parece mau, é quase sempre um restolho daquilo que na precedente era considerado bom - o atavismo de um ideal já envelhecido". Essa visão é reforçada por Sánchez VÁSQUEZ (1995, p.235) ao introduzir seu conceito de doutrinas éticas:
As doutrinas éticas fundamentais nascem e se desenvolvem em diferentes épocas e sociedades como respostas aos problemas básicos apresentados pelas relações entre os homens e em particular pelo seu comportamento moral efetivo. Por isto, existe uma estreita vinculação entre os conceitos morais e a realidade humana, social, sujeita historicamente à mudança. Por conseguinte, as doutrinas éticas não podem ser consideradas isoladamente, mas dentro de um processo de mudança e de sucessão que constitui propriamente a sua história. Ética e história, por tanto, relacionam-se duplamente: a) Com a vida social e, dentro desta, com as morais concretas que são um dos seus aspectos; b) com a sua história própria, já que cada doutrina está em conexão com as anteriores (tomando posição contra elas ou integrando alguns problemas e soluções precedentes), ou com as doutrinas posteriores (prolongando-se ou enriquecendo-se nelas).
Em toda moral efetiva se elaboram certos princípios, valores ou normas. Mudando radicalmente a vida social, muda também a vida moral. Os princípios, valores ou normas encarnados nela entram em crise e exigem a sua justificação ou a sua substituição por outros. Surgem então, a necessidade de novas reflexões ou de uma nova teoria moral, pois os conceitos, valores e normas vigentes se tornaram problemáticos. Assim se explica a aparição e sucessão de doutrinas éticas fundamentais em conexão com a mudança e a sucessão de estruturas sociais, e, dentro delas, da vida moral.
Muitos filósofos se debruçaram sobre as questões morais e produziram contribuições muito importantes sobre o tema. Foge ao alcance de nosso trabalho apresentar com profundidade as contribuições que Platão, Aristóteles, Espinosa, Kant e outros grandes filósofos deram à discussão sobre a moral. Mas, para entendermos nossas posturas frente aos problemas éticos faz-se muito necessário uma análise das nossas matrizes culturais, que no ocidente estão estabelecidas nas tradições greco-romanas e judaico-cristãs. Por essa razão é importantíssima a análise de algumas doutrinas éticas que proporcionarão um embasamento teórico ao nosso trabalho.
DOUTRINAS ÉTICAS
Para facilitar o estudo das doutrinas éticas, ou teorias acerca da moral, preferimos dividi-las nos seguintes segmentos, correlacionados historicamente: ética grega, ética cristã medieval, ética moderna e ética contemporânea.
Sendo assim, vamos partir do princípio que a história da ética teve sua origem, pelo menos sob o ponto de vista formal, na antigüidade grega, através de Aristóteles (384 - 322 a.C.) e suas idéias sobre a ética e as virtudes éticas.
Na Grécia porém, mesmo antes de Aristóteles, já é possível identificar traços de uma abordagem com base filosófica para os problemas morais e até entre os filósofos conhecidos como pré-socráticos encontramos reflexões de caráter ético, quando buscavam entender as razões do comportamento humano.
Sócrates (470-399 a.C.) considerou o problema ético individual como o problema filosófico central e a ética como sendo a disciplina em torno da qual deveriam girar todas as reflexões filosóficas. Para ele ninguém pratica voluntariamente o mal. Somente o ignorante não é virtuoso, ou seja, só age mal, quem desconhece o bem, pois todo homem quando fica sabendo o que é bem, reconhece-o racionalmente como tal e necessariamente passa a praticá-lo. Ao praticar o bem, o homem sente-se dono de si e conseqüentemente é feliz.
A virtude seria o conhecimento das causas e dos fins das ações fundadas em valores morais identificados pela inteligência e que impelem o homem a agir virtuosamente em direção ao bem.
Platão (427-347 a.C.) ao examinar a idéia do Bem a luz da sua teoria das idéias, subordinou sua ética à metafísica. Sua metafísica era a do dualismo entre o mundo sensível e o mundo das idéias permanentes, eternas, perfeitas e imutáveis, que constituíam a verdadeira realidade e tendo como cume a idéia do Bem, divindade, artífice ou demiurgo do mundo.
Para Platão a alma - princípio que anima ou move o homem - se divide em três partes: razão, vontade (ou ânimo) e apetite (ou desejos). As virtudes são função desta alma, as quais são determinadas pela natureza da alma e pela divisão de suas partes. Na verdade ele estava propondo uma ética das virtudes, que seriam função da alma.
Pela razão, faculdade superior e característica do homem, a alma se elevaria mediante a contemplação ao mundo das idéias. Seu fim último é purificar ou libertar-se da matéria para contemplar o que realmente é e, acima de tudo, a idéia do Bem.
Para alcançar a purificação é necessário praticar as várias virtudes que cada parte da alma possui. Para Platão cada parte da alma possui um ideal ou uma virtude que devem ser desenvolvidos para seu funcionamento perfeito. A razão deve aspirar à sabedoria, a vontade deve aspirar à coragem e os desejos devem ser controlados para atingir a temperança.
Cada uma das partes da alma, com suas respectivas virtudes, estava relacionada com uma parte do corpo. A razão se manifesta na cabeça, a vontade no peito e o desejo baixo-ventre. Somente quando as três partes do homem puderem agir como um todo é que temos o indivíduo harmônico.
A harmonia entre essas virtudes constituía uma quarta virtude: a justiça.
Platão de certa forma criou uma "pedagogia" para o desenvolvimento das virtudes. Na escola as crianças primeiramente têm de aprender a controlar seus desejos desenvolvendo a temperança, depois incrementar a coragem para, por fim, atingir a sabedoria.
A ética de Platão está relacionada intimamente com sua filosofia política, porque para ele, a polis (cidade estado) é o terreno próprio para a vida moral. Assim ele buscou um estado ideal, um estado-modelo, utópico, que era constituído exatamente como o ser humano. Assim, como o corpo possui cabeça, peito e baixo-ventre, também o estado deveria possuir, respectivamente, governantes, sentinelas e trabalhadores. O bom estado é sempre dirigido pela razão.
CORPO | ALMA | VIRTUDE | ESTADO |
Cabeça | Razão | Sabedoria | Governantes |
Peito | Vontade | Coragem | Sentinelas |
Baixo-ventre | Desejo | Temperança | Trabalhadores |
É curioso notar que, no Estado de Platão, os trabalhadores ocupam o lugar mais baixo em sua hierarquia. Talvez isto tenha ligação com a visão depreciativa que os gregos antigos tinham sobre esta atividade.
A ética platônica exerceu grande influência no pensamento religioso e moral do ocidente, como teremos oportunidade de ver mais adiante.
Aristóteles (384-322 a.C.), não só organizou a ética como disciplina filosófica mas, além disso, formulou a maior parte dos problemas que mais tarde iriam se ocupar os filósofos morais: relação entre as normas e os bens, entre a ética individual e a social, relações entre a vida teórica e prática, classificação das virtudes, etc. Sua concepção ética privilegia as virtudes (justiça, caridade e generosidade), tidas como propensas tanto a provocar um sentimento de realização pessoal àquele que age quanto simultaneamente beneficiar a sociedade em que vive. A ética aristotélica busca valorizar a harmonia entre a moralidade e a natureza humana, concebendo a humanidade como parte da ordem natural do mundo, sendo portanto uma ética conhecida como naturalista.
Segundo Aristóteles, toda a atividade humana, em qualquer campo, tende a um fim que é, por sua vez um bem: o Bem Supremo ou Sumo Bem, que seria resultado do exercício perfeito da razão, função própria do homem. Assim sendo, o homem virtuoso é aquele capaz de deliberar e escolher o que é mais adequado para si e para os outros, movido por uma sabedoria prática em busca do equilíbrio entre o excesso e a deficiência:
A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada com a escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num meio termo (o meio termo relativo a nós) determinado pela razão (a razão graças à qual um homem dotado de discernimento o determinaria). Trata-se de um estado intermediário, porque nas várias formas de deficiência moral há falta ou excesso do que é conveniente tanto nas emoções quanto nas ações, enquanto a excelência moral encontra e prefere o meio termo. Logo, a respeito do que ela é, ou seja, a definição que expressa a sua essência, a excelência moral é um meio termo, mas com referência ao que é melhor e conforme ao bem ela é um extremo. (ARISTÓTELES, 1992, p.42)
E procede exemplificado:
Em relação ao meio termo, em alguns casos é a falta e em outros é o excesso que está mais afastado; por exemplo, não é temeridade, que é o excesso, mas a covardia, que é a falta, que é mais oposta à coragem, e não é a insensibilidade, que é uma falta, mas a concupiscência, que é um excesso, que é mais oposta à moderação. Isto ocorre por duas razões; uma delas tem origem na própria coisa, pois por estar um extremo mais próximo ao meio termo e ser mais parecido com ele opomos ao intermediário não o extremo, mas seu contrário. Por exemplo, como se considera a temeridade mais parecida com a coragem, e a covardia mais diferente, opomos esta última à coragem, pois as coisas mais afastadas do meio termo são tidas como mais contrárias a ele; a outra razão tem origem em nós mesmos, pois as coisas para as quais nos inclinamos mais naturalmente parecem mais contrárias ao meio termo. Por exemplo, tendemos mais naturalmente para os prazeres, e por isso somos levados mais facilmente para a concupiscência do que para a moderação. Chamamos portanto contrárias ao meio termo as coisas para as quais nos sentimos mais inclinados; logo, a concupiscência, que é um excesso é mais contrária à moderação. (ibid, p.46)
Daí ser difícil, segundo Aristóteles, ser bom na medida em que o meio termo não é facilmente encontrado: "Por isso a bondade tanto é rara quanto nobre e louvável".
A Ética de Aristóteles - assim como a de Platão - está unida à sua filosofia política, já que para ele a comunidade social e política é o meio necessário para o exercício da moral. Somente nela pode realizar-se o ideal da vida teórica na qual se baseia a felicidade. O homem moral só pode viver na cidade e é portanto um animal político, ou seja social. Apenas deuses e animais selvagens não tem necessidade da comunidade política para viver. O homem deve necessariamente viver em sociedade e não pode levar uma vida moral como indivíduo isolado e sim no seio de uma comunidade.
O estoicismo e o epicurismo surgem no processo de decadência e de ruína do antigo mundo greco-romano.
Para Epicuro (341-270 a.C) o prazer é um bem e como tal o objetivo de uma vida feliz. Estava lançada então a idéia de hedonismo que é uma concepção ética que assume o prazer como princípio e fundamento da vida moral. Mas, existem muitos prazeres, e nem todos são igualmente bons. É preciso escolher entre eles os mais duradouros e estáveis, para isso é necessário a posse de uma virtude sem a qual é impossível a escolha. Essa virtude é a prudência, através da qual podemos selecionar aqueles prazeres que não nos trazem a dor ou perturbações. Os melhores prazeres não são os corporais - fugazes e imediatos - mas os espirituais, porque contribuem para a paz da alma.
Para os estóicos (por exemplo, Zenão, Sêneca e Marco Aurélio) o homem é feliz quando aceita seu destino com imperturbabilidade e resignação. O universo é um todo ordenado e harmonioso onde os sucessos resultam do cumprimento da lei natural racional e perfeita. O bem supremo é viver de acordo com a natureza, aceitar a ordem universal compreendida pela razão, sem se deixar levar por paixões, afetos interiores ou pelas coisas exteriores. O homem virtuoso é aquele que enfrenta seus desejos com moderação aceitando seu destino. O estóico é um cidadão do cosmo não mais da pólis.
O Cristianismo se eleva sobre o que restou do mundo greco-romano e no século IV torna-se a religião oficial de Roma. Com o fim do "mundo antigo" o regime de servidão substitui o da escravidão e sobre estas bases se constrói a sociedade feudal, extremamente estratificada e hierarquizada. Nessa sociedade fragmentada econômica e politicamente, verdadeiro mosaico de feudos, a religião garantia uma certa unidade social.
Por este motivo a política fica dependente dela e a Igreja Católica passa a exercer, além de poder espiritual, o poder temporal e a monopolizar também a vida intelectual.
Evidentemente a ética fica sujeita a este conteúdo religioso.
Os filósofos cristãos tiveram uma dupla atitude diante da ética. Absorveram o ético no religioso, edificando um tipo de ética que hoje chamamos de teônoma, que fundamenta em Deus os princípios da moral. Deus, criador do mundo e do homem, é concebido como um ser pessoal, bom, onisciente e todo poderoso. O homem, como criatura de Deus, tem seu fim último Nele, que é o seu bem mais alto e valor supremo. Deus exige a sua obediência e a sujeição a seus mandamentos, que neste mundo têm o caráter de imperativos supremos.
Num outro sentido também aproveitaram muitas das idéias da ética grega - principalmente platônicas e estóicas - de tal modo que partes dessa ética, como a doutrina das virtudes e sua classificação inseriram-se quase na sua totalidade na ética cristã.
Evidentemente, enquanto certas normas éticas eram assimiladas, outras, por sua incompatibilidade com os ensinamentos cristãos eram rejeitados. A justificativa do suicídio, por exemplo, foi amplamente rejeitada pelos filósofos cristãos.
A ética cristã é uma ética subordinada à religião num contexto em que a filosofia é "serva" da teologia. Temos então um ética limitada por parâmetros religiosos e dogmáticos.
É uma ética que tende a regular o comportamento dos homens com vistas a um outro mundo (o reino de Deus), colocando o seu fim ou valor supremo fora do homem, na divindade.
É curioso notar que ao pretender elevar o homem de uma ordem natural para outra transcendental e sobrenatural, onde possa viver um vida plena e feliz, livre das desigualdades e injustiças do mundo terreno, ela introduz uma idéia verdadeiramente inovadora, ou seja, todos seriam iguais diante de Deus e são chamados a alcançar a perfeição e a justiça num mundo sobrenatural, o reino dos Céus.
Em sua gênese essa ética também absorve muito do que Platão e Aristóteles desenvolveram. Pode-se até dizer que seus dois maiores filósofos, Santo Agostinho (354-430) e São Tomás de Aquino (1226-1274) refletem, respectivamente, idéias de Platão e Aristóteles.
A purificação da alma, em Platão, e sua ascensão libertadora até elevar-se ao mundo das idéias tem correspondência na elevação ascética até Deus exposta por Santo Agostinho.
A ética de Tomás de Aquino tem muitos pontos de coincidência com Aristóteles e como aquela busca através de contemplação e de conhecimento alcançar o fim último, que para ele era Deus.
A história da ética complica-se a partir do Renascimento Europeu e podemos chamar de ética moderna às diversas tendências que prevaleceram desde o século XVI até o início do século XIX.
Não é fácil sistematizar as diversas doutrinas éticas que surgiram neste período, tamanha sua diversidade, mas podemos encontrar, talvez como reação à ética cristã descêntrica e teológica uma tendência antropocêntrica.
Evidentemente essa mudança de ponto de vista não aconteceu ao acaso. Fez-se necessário um entendimento sobre as mudanças que o mundo sofreu, nas esferas econômica, política e científica para entendermos todo o processo.
A forma de organização social que sucedeu à feudal, traz em sua estrutura mudanças em todas as ordens.
A economia, por exemplo, viu crescer de forma muito intensa o relacionamento de suas forças produtivas com o desenvolvimento científico que começara a fundamentar a ciência moderna - são dessa época os trabalhos de Galileu e Newton - e desse relacionamento se desenvolvem as relações capitalistas de produção.
Essa nova forma de produção fortalece uma nova classe social - a burguesia - que luta para se impor política e economicamente. É uma época de grandes revoluções políticas (Holanda, França e Inglaterra) e no plano estatal assistimos o desaparecimento da fragmentada sociedade feudal e o fortalecimento dos grandes Estados Modernos, únicos e centralizados.
Nessa nova ordem vemos a razão se separando da fé (a filosofia separa-se da religião), as ciências naturais dos pressupostos teológicos, o Estado da Igreja e o homem de Deus.
Essa ruptura fica muito evidente quando, entre a Idade Média e a Modernidade, o italiano Nicolau Maquiavel (1469-1527) provoca uma revolução na ética ao romper com a moral cristã, que impõe os valores espirituais como superiores aos políticos, quando defendeu a adoção de uma moral própria em relação ao Estado. O que importa são os resultados e não a ação política em si, sendo legítimos os usos da violência contra os que se opõe aos interesses estatais.
Examinando as outras qualidades atrás enumeradas, direi que todo o príncipe deve desejar ser tido como piedoso, e não como cruel; não obstante, deve cuidar de não usar mal a piedade. Cesar Borgia era tido como cruel; entretanto, essa sua crueldade havia posto ordem na Romanha, promovido a sua união e a sua pacificação e inspirando confiança, o que, bem considerado, mostra ter sido ele muito mais piedoso do que os florentinos, os quais, para esquivarem da reputação de cruéis deixaram que Pistóia fosse destruída. Deve um príncipe, portanto, não se importar com a reputação de cruel, a fim de poder manter os seus súditos em paz e confiantes, pois que, com pouquíssimas repressões, será mais piedoso do que aqueles que, por muito clementes, permitem as desordens das quais resultem assassínios e rapinagens. Estas atingem a comunidade inteira, enquanto que os castigos impostos pelo príncipe atingem poucos. (MAQUIAVEL, sd, p.107)
Na verdade o que estamos presenciando é uma extraordinária sugestão para a aplicação de novos valores. A obra de Maquiavel influenciará, como veremos mais tarde, outros pensadores modernos como o inglês Thomas Hobbes e Baruch de Epinosa, extremamente realistas no que se refere à ética.
O homem recupera então seu valor pessoal e passa a ser visto como dotado de razão e afirma-se em todos os campos, da ciência às artes. Descartes (1596-1650) esboça com muita clareza esta tendência de basear a filosofia no homem, que passa a ser o centro de tudo, da política, da arte, e também da moral. Vemos então o aparecimento de uma ética antropocêntrica.
Como se vê, a É. dos secs XVII e XVIII manifesta um alto grau de uniformidade: não só ela é uma doutrina do móvel mas também a sua oscilação entre a "tendência a conservação" e a "tendência ao prazer" como base da moral não implica uma diferença radical, já que o próprio prazer não é senão o índice e motivo de uma situação favorável à conservação. (ABBAGNANO, sd, p.364)
Thomas Hobbes (1588-1679) consegue sistematizar esta ética do desejo, que existe em cada ser, de própria conservação como sendo o fundamento da moral e do direito. Para Hobbes, a vida do homem no estado de natureza - sem leis nem governo - era "solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta", uma vez que os homens são por índole agressivos, autocentrados, insociáveis e obcecados por um "desejo de ganho imediato".
O principal dos bens é a conservação de si mesmo. A natureza, com efeito, proveu para que todos desejem o próprio bem, mas afim de que possam ser capazes disso, é necessário que desejem a vida, a saúde e a maior segurança dessas coisas para o futuro. De todos os males porém, o primeiro é a morte, especialmente se acompanhada de sofrimento. Já que os males da vida podem ser tantos que senão se prever como próximo o seu fim, fazem contar a morte entre os bens.(De hom., XI , 6)
Para Hobbes, indivíduos que decidem viver em sociedade não são melhores ou menos egoístas do que os selvagens: são apenas mais clarividentes, percebendo que, se cooperarem, podem ser mais ricos e mais felizes. Seu bom comportamento deriva do seu egoísmo. Em outras palavras, o que leva dois homens pré-históricos a se unirem numa caçada a um tigre dente-de-sabre, é o fato de que, juntos, têm mais chances de matá-lo sem se ferirem.
Baruch de Espinosa (1632-1677) afirmava que os homens tendem naturalmente a pensar apenas em si mesmos, que em seus desejos e opiniões as pessoas são sempre conduzidas por suas paixões, as quais nunca levam em conta o futuro ou as outras pessoas. Essa tendência a conservação, à consecução de tudo que é útil é muitas vezes colocada na obra de Espinosa como sendo a própria ação necessitante da Substância Divina.
Uma vez que a Razão não pede nada que seja contra a Natureza, ela pede, por conseguinte, que cada um se ame a si mesmo, procure o que lhe é útil, mas o que lhe é útil de verdade; deseje tudo o que conduz, de fato, o homem a uma maior perfeição; e, de uma maneira geral, que cada um se esforce por conservar o seu ser, tanto quanto lhe é possível. Isto é tão necessariamente verdadeiro como o todo ser maior que a sua parte. (ESPINOSA, 1973, p.244).
Jonh Locke (1632-1704) atrela a tendência à conservação e satisfação à uma concepção de "felicidade pública". Dizia Locke:
Como Deus estabeleceu um liame indissolúvel entre a virtude e a felicidade pública, e tornou a prática da virtude necessária à conservação da sociedade humana e visivelmente vantajosa para todos os que precisam tratar com as pessoas de bem, ninguém se deve maravilhar se cada um não só aprovar essas regras, mas igualmente recomendá-las aos outros, estando persuadido de que, se as observarem, lhe advirão vantagens a ele próprio. (Ensaio, I, 2, 6)
David Hume (1711-1776) seguindo essa linha nos coloca que o fundamento da moral é a utilidade, ou seja, é boa ação aquela que proporciona "felicidade e satisfação" à sociedade. A utilidade agrada porque responde a uma necessidade ou tendência natural que inclina o homem a promover a felicidade dos seus semelhantes.
Ao invés de limitar os desejos humanos àqueles determinados apenas pelo interesse pessoal (comida, dinheiro, glória, etc), Hume percebeu que muitas das nossas paixões estão baseadas no que ele chamava de simpatia - a capacidade de sentir em si mesmo os sofrimentos e até mesmo as alegrias de outrem.
Essa visão do ser humano como criatura simpática tornava impossível traçar, à maneira de Hobbes, uma nítida linha divisória entre o interesse pessoal e o interesse alheio, uma vez que agora é possível encarar o interesse alheio como se ele fosse um interesse pessoal. Hume estava propondo uma espécie de razão emocional para o comportamento altruísta.
Para Jean Jaques Rousseau (1712-1778) o homem é bom por natureza e seu espírito pode sofrer um aprimoramento quase ilimitado.
Talvez a expressão maior da ética moderna tenha sido o filósofo alemão Immannuel Kant (1724-1804).
A preocupação maior da ética de Kant era estabelecer a regra da conduta na substância racional do homem. Ele fez do conceito de dever ponto central da moralidade. Hoje em dia chamamos a ética centrada no dever de deontologia.
Kant dizia que a única coisa que se pode afirmar que seja boa em si mesma é a "boa vontade" ou boa intenção, aquilo que se põe livremente de acordo com o dever. O conhecimento do dever seria conseqüência da percepção, pelo homem, de que é um ser racional e como tal está obrigado a obedecer o que Kant chamava de "imperativo categórico", que é a necessidade de respeitar todos os seres racionais na qualidade de "fins em si mesmo". É o reconhecimento da existência de outros homens (seres racionais) e a exigência de comportar-se diante deles a partir desse reconhecimento.
Deve-se então tratar a humanidade na própria pessoa como na do próximo sempre como um fim e nunca só como um meio.
A ética kantiana busca, sempre na razão, formas de procedimentos práticos que possam ser universalizáveis, isto é, um ato moralmente bom é aquele que pode ser universalizável, de tal modo que os princípios que eu sigo possam valer para todos.
"Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal." (KANT, 1984, p.129)
Analisando a questão da tortura, por exemplo, me questiono se tal procedimento deveria ser universalizado ou não. Se não posso querer a universalização da tortura, também não posso aceitá-la no aqui e agora.
Friedrich Hegel (1770-1831) pode ser considerado como sendo o mais importante filósofo do idealismo alemão pós-kantiano.
Para ele, a vida ética ou moral dos indivíduos, enquanto seres históricos e culturais, é determinada pelas relações sociais que mediatizam as relações pessoais intersubjetivas. Hegel dessa forma transforma a ética em uma filosofia do direito. Ele a divide em ética subjetiva (ou pessoal) e em ética objetiva (ou social). A primeira é uma consciência de dever e a segunda é formada pelos costumes, pelas leis e normas de uma sociedade. O Estado, para Hegel, reúne esses dois aspectos numa "totalidade ética".
Assim, a vontade individual subjetiva é também determinada por uma vontade objetiva, impessoal, coletiva, social e pública que cria as diversas instituições sociais. Além disso, essa vontade regula e normatiza as condutas individuais através de um conjunto de valores e costumes vigentes em uma determinada sociedade em uma determinada época.
O ideal ético estava numa vida livre dentro de um Estado livre, um Estado de Direito que preservasse os direitos dos homens e lhes cobrasse seus deveres, onde a consciência moral e as leis do direito não estivessem nem separadas e nem em contradição.
Dessa maneira, a vida ética consiste na interiorização dos valores, normas e leis de uma sociedade, condensadas na vontade objetiva cultural, por um sujeito moral que as aceita livre e espontaneamente através de sua vontade subjetiva individual. A vontade pessoal resulta da aceitação harmoniosa da vontade coletiva de uma cultura.
O alemão Karl Marx (1818-1883) também via a moral como uma espécie de "superestrutura ideológica", cumprindo uma função social que, via de regra, servia para sacramentar as relações e condições de existência de acordo com os interesses da classe dominante. Numa sociedade dividida por classes antagônicas a moral sempre terá um caráter de classe.
Até hoje existem diferentes morais de classe e inclusive numa mesma sociedade podem coexistir várias morais, já que cada classe assume uma moral particular. Assim, enquanto não se verificarem as condições reais para uma moral universal, válida para toda a sociedade, não pode existir um sistema moral válido para todos os tempos e todas as sociedades.
Para Marx, sempre que se tentou construir semelhante sistema no passado estava-se tentando imprimir um caráter universal a interesses particulares.
Se entendermos a moral proletária como sendo a moral de uma classe que está destinada historicamente a abolir a si mesma como classe para ceder lugar a uma sociedade verdadeiramente humana, serve como passagem a uma moral universalmente humana.
Os homens necessitam da moral como necessitam da produção e cada moral cumpre sua função social de acordo com a estrutura social vigente.
Torna-se necessária então uma nova moral que não seja o reflexo de relações sociais alienadas, para regular as relações entre os indivíduos, tanto em vista das transformações da velha sociedade como para garantir a harmonia da emergente sociedade socialista.
Tudo isso, a transformação da antiga moral e a construção da nova, exigem a participação consciente dos homens. A nova moral, com suas novas virtudes transforma-se numa necessidade. O homem portanto, deve interferir sempre na transformação da sociedade.
Uma outra visão nos é apresentada no pensamento de Nietzsche (1844-1900), que é um crítico veemente e mordaz a toda moral existente, seja ela a moral socrática, a judaico-cristão ou a moral burguesa.
Necessitamos uma crítica dos valores morais, e antes de tudo deve discutir-se o valor desses valores, e por isso é de toda a necessidade conhecer as condições e os meios ambientes em que nasceram, em que se desenvolveram e deformaram (a moral como conseqüência, máscara, hipocrisia, enfermidade ou equívoco, e também a moral como causa, remédio, estimulante, freio ou veneno) conhecimento tal que nunca teve outro semelhante nem é possível que o tenha. Era um verdadeiro postulado o valor desses valores: atribui-se ao bem um valor superior ao valor do mal, ao valor do progresso, da utilidade, do desenvolvimento humano. E por que? Não poderia haver no homem "bom" um sintoma de retrocesso, um perigo, uma sedução, um veneno, um sacrifício do presente a expensas do futuro? Uma vida mais agradável, mais inofensiva, mas também mais mesquinha, mais baixa?... De tal modo que fosse culpa da moral o não ter chegado o tipo homem ao mais alto grau do poder e do esplendor? E de modo que entre todos os perigos fosse a moral o perigo por excelência?... (NIETZSCHE, 1983, p.13-14)
Para este filósofo, a vida é vontade de poder, princípio último de todos os valores; o bem é tudo que favorece a força vital do homem, é tudo o que intensifica e exalta no homem o sentimento de poder, a vontade de poder e o próprio poder. O mal é tudo que vem da fraqueza. Nietzsche anunciou o super-homem, capaz de quebrar a tábua dos valores transmutando-os a todos.
Uma outra corrente dentro da ética é o utilitarismo, segundo o qual o objetivo da moral é o de proporcionar o máximo de felicidade ao maior número de pessoas.
Para John Stuart Mill (1806-1873), representante da ética utilitarista, a felicidade reside na busca do máximo prazer e do mínimo de dor. O Bem consiste na maior felicidade e a virtude é um meio de se atingir essa felicidade, fundamento de toda filosofia moral.
O credo que aceita a Utilidade ou Princípio da Maior Felicidade como fundamento da moral, sustenta que as ações são boas na proporção com que tendem a produzir a felicidade; e más, na medida em que tendem a produzir o contrário da felicidade. Entende-se por felicidade o prazer e a ausência de dor; por infelicidade, a dor e a ausência de prazer . [...] O prazer e a isenção de dor são as únicas coisas desejáveis [...] como fins; e [...] todas as coisas desejáveis [...] o são pelo prazer inerente a elas mesmas ou como meios para a promoção do prazer e a preservação da dor. (MILL, 1960, p. 29-30)
Da idéia de bem como sendo o que traz vantagens para muitos se deduziu até mesmo uma matemática ou cálculo moral.
Estas tendências aparecem em muitas formulações éticas, principalmente numa corrente conhecida como pragmatismo.
O pragmatismo, como doutrina ética, parece estar muito ligado ao pensamento anglo-saxão, tendo se desenvolvido muito nos países de fala inglesa, particularmente nos Estados Unidos, no último quarto do século passado.
Seus principais expoentes são o filósofo e psicólogo William James (1842-1910) e o filósofo educador John Dewey.
O pragmatismo deixa de lado as questões teóricas de fundo, afastando-se dos problemas abstratos da velha metafísica e dedicando-se às questões práticas vistas sob uma ótica utilitária.
Procura identificar a verdade com o útil, como aquilo que melhor ajuda a viver e conviver. O Bom é algo que conduz a obtenção eficaz de uma finalidade, fim esse que nos conduz a um êxito.
Dessa forma os valores, princípios e normas perdem seu conteúdo objetivo e o bem passa a ser aquilo que ajuda o homem em suas atividades práticas, variando conforme cada situação.
O pragmatismo pode bem ser o reflexo do progresso científico e tecnológico alcançado pelos Estados Unidos no apogeu de sua fase capitalista onde o "espírito de empresa", o "american way of life", criaram solo fértil para a mercantilização das várias atividades humanas.
Existe um grande perigo embutido no pragmatismo, que é a redução do comportamento moral a atos que conduzam apenas ao êxito pessoal transformando-o numa variante utilitarista marcada apenas pelo egoísmo, rejeitando a existência de valores ou normas objetivas.
Uma distorção muito comum em nossa sociedade capitalista é a busca da vantagem particular, onde o bom é o que ajuda meu progresso e o meu sucesso particular.
Não podemos seguir adiante, sem comentarmos a obra do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941). Bergson distinguiu uma moral fechada e uma moral aberta. A fechada é o conjunto do que é permitido e do que é proibido para os indivíduos de uma sociedade, tendo em vista a autoconservação da mesma. Ela é imposta aos indivíduos e tem como finalidade tornar a vida em comum possível e útil a todos. "Ela corresponde no mundo humano ao que é instinto em certas sociedades animais, isto é, tende ao fim de conservar as próprias sociedades."
Do outro lado encontramos a moral aberta, nascida de um impulso criador supra-racional. É a moral do amor, da liberdade e da humanidade universal, que resulta de uma emoção criadora. Enquanto tal, torna possível a criação de novos valores e de novas condutas em substituição àquelas vigentes segundo a moral fechada.
É a moral dos profetas, dos inovadores, dos místicos, dos sábios e dos santos. Graças sempre a eles, foi, e é possível, a instauração de uma nova ética em face da moral vigente.
Na filosofia contemporânea, os princípios do liberalismo influenciaram bastante o conceito de ética, que ganha fortes traços de moral utilitarista. Os indivíduos devem buscar a felicidade e, para isso, fazer as melhores escolhas entre as alternativas existentes. Para o filósofo inglês Bertrand Russel (1872-1970) a ética é subjetiva. Não contém afirmações verdadeiras ou falsas. É a expressão dos desejos de um grupo. Mas Russel diz que o homem deve reprimir certos desejos e reforçar outros, se pretende atingir a felicidade ou o equilíbrio.
Para finalizar esse capítulo, consideramos ser de grande importância uma análise dos trabalhos de Habermas e John Rawls.
Jurgem Habermas, filósofo alemão nascido em 1924, é professor da Universidade de Frankfurt.
Sua obra pretende ser uma revisão e uma atualização do marxismo, capaz de dar conta das características do capitalismo avançado da sociedade industrial contemporânea. Faz uma critica à racionalidade dessa sociedade, caracterizando-a em termos de uma "razão instrumental", que visa apenas estabelecer os meios para se alcançar um fim determinado. Segundo sua análise, o desenvolvimento técnico e a ciência voltada apenas para a aplicação técnica acarretam na perda do próprio bem, que estaria submetido às regras de dominação técnica do mundo natural.
É necessário então a recuperação da dimensão humana, de uma racionalidade não-instrumental, baseada no "agir comunicativo" entre sujeitos livres, de caráter emancipador em relação à dominação técnica.
Habermas percebeu a distorção dessa possibilidade de ação comunicativa, que produziu relações assimétricas e impediu uma interação plena entre as pessoas.
A proposta de Habermas formula-se em termos de uma "teoria da ação comunicativa", recorrendo inclusive à filosofia analítica da linguagem para tematizar essas condições do uso da linguagem livre de distorção como fundando uma nova racionalidade.
Habermas busca uma teoria geral da verdade, segundo a qual o critério da verdade é o consenso dos que argumentam e defende a idéia de que argumentar é uma tarefa eminentemente comunicativa. Por isso, o "discurso intersubjetivo" é o lugar próprio para a argumentação.
Somente se poderia aceitar como critério de verdade aquele consenso que se estabelece sob condições ideais, que Habermas chama de "situação ideal de fala". Ou seja, a razão é definida pragmaticamente de tal modo que um consenso é racional quando é estabelecido numa condição ideal de fala. Para que isso seja possível, definiu uma série de regras básicas, cuja observação é condição para que se possa falar de um discurso verdadeiro.
Essas regras são, em primeiro lugar, que todos os participantes tenham as mesmas chances de participar do diálogo, em segundo, que devem ter chances iguais para a crítica. São formas de, quando uma argumentação tem lugar entre várias pessoas, a eliminação dos fatores de poder que poderiam perturbar a argumentação.
Uma terceira condição seria que todos os falantes deveriam ter chances iguais para expressar suas atitudes, sentimentos e intenções.
A quarta e decisiva condição afirma que serão apenas admitidos ao discurso falantes que tenham as mesmas chances enquanto agentes para dar ordens e se opor, permitir e proibir, etc.
Um diálogo sobre questões morais entre senhores e escravos, patrões e empregados, pai e filho, violaria, portanto as condições da situação ideal da fala.
Lembramos que o "discurso autêntico" é aquele que ocorre com pessoas em situação igual, sob condições igualitárias do ponto de vista de participação no discurso.
Habermas ainda defende o projeto iniciado pelo Iluminismo como algo ainda a ser desenvolvido e significativo para nossa época, desde que a razão seja entendida criticamente, no sentido do agir comunicativo.
John Rawls, em sua "Teoria da Justiça" (1971) afirma que a justiça não é um resultado de interesses, por públicos que sejam. Ele fala de uma justiça distributiva partindo de um "estado inicial" por meio do qual se pode assegurar que os acordos básicos a que se chega num contrato social sejam justos e eqüitativos.
A justiça é entendida como eqüidade por ser eqüitativa em relação a uma posição original que está baseada em dois princípios: a) cumpre assegurar para cada pessoa numa sociedade, direitos iguais numa liberdade compatível com a liberdade dos outros; b) deve haver uma distribuição de bens econômicos e sociais de modo que toda desigualdade resulte vantajosa para cada um, podendo além disso ter cada um acesso, sem obstáculos, a qualquer posição ou cargo.
A concepção geral de sua teoria afirma que, todos os bens sociais primários - liberdade e oportunidade, rendimentos e riquezas, e as bases de respeito a si mesmo devem ser igualmente distribuídas, a menos que uma distribuição desigual desses bens seja vantajosa para os menos favorecidos.
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